Ciências jurídicas e temas correlatos

Autor: Victor Augusto Page 15 of 27

Art. 26 – Inimputabilidade penal

Inimputáveis
Art. 26 – É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.
Redução de pena
Parágrafo único – A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

Um primado básico da punição criminal é a imputabilidade, a possibilidade de se imputar ao sujeito a responsabilidade pelo resultado produzido. Trata-se de um dos elementos da culpabilidade, que, de forma geral, trata do juízo de reprovabilidade e censura que recai sobre o agente e das condições deste responder pelo que fez.

Pode, então, definir-se a responsabilidade como a existência dos pressupostos psíquicos pelos quais alguém é chamado a responder penalmente pelo crime que praticou.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, P. 320.

Em certas hipóteses, o agente pode sofrer de alguma condição biopsicológica que lhe impede a compreensão do caráter ilícito do fato ou a possibilidade de se determinar com base nesse entendimento. Ou seja, o agente não compreende que o ato é ilícito ou, se compreende, ele não consegue se controlar para evitar a realização do ato. Faltam-lhe os pressupostos psíquicos necessários para considerá-lo culpável.

Entender ou compreender é o ato de observar um ato e normalmente atribuir o seu valor ético-jurídico: é um ilícito ou não? E autodeterminação é a habilidade de autogoverno, a de controlar seus atos e impulsos.

O Código apresenta hipóteses onde não há imputabilidade, culpabilidade ou crime, por força de condição biopsicológica:

  • Doença mental;
  • Desenvolvimento mental incompleto ou retardado.

Em ambos os casos, é necessário que essa condição esteja em efeito no momento da conduta e que, neste momento, o agente não tenha capacidade de discernir o ilícito ou de se determinar em não o cometer. A incapacidade, neste caso, tem que ser total.

Ou seja, não é todo agente acometido por doença ou desenvolvimento mental insuficiente que irá se beneficiar. É necessário a conjunção simultânea de todas essas circunstâncias, pois há casos em que a doença só manifesta seus sintomas eventualmente, permanecendo o agente lúcido na maior parte do tempo.

Se a incapacidade em discernir e se determinar for relativa (a pessoa era parcialmente capaz de entender e se determinar) a punição é mantida, mas com o benefício de uma causa de diminuição de um a dois terços (1/3 a 2/3).

Em face do Código, a responsabilidade só deixa de existir quando inteiramente suprimidas no agente ao tempo da ação ou omissão, a capacidade de entendimento ético-jurídico ou a capacidade de adequada determinação da vontade ou de autogoverno.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, P. 321-322.

A ideia por trás destes dispositivos reside no reduzido (ou inexistente) juízo de reprovabilidade social, visto que o agente, nesses casos, age por força da doença ou de adversa condição biopsicológica pessoal. Não há a malícia que envolve o delito comum.

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 25 – Da legítima defesa real e putativa

Legítima defesa
Art. 25 – Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

A legítima defesa é a segunda causa de justificação prevista no Código. Por ela, a reação a uma agressão injusta considera-se lícita, mesmo que se ajuste ao tipo criminal.

Os elementos da causa excludente são os seguintes:

  • Uso moderado dos meios necessários: a reação da vítima da agressão deve ser moderada e deve se valer dos meios necessários para repelir a agressão.

Esse requisito é relativamente casuístico. Se a vítima tem a seu dispor vários meios para repelir a agressão, deve escolher o meio suficientemente necessário (mínima lesividade, mas eficiente) e usá-lo moderadamente.

Então, se a vítima tem a seu dispor um canhão, um revólver e uma espada para repelir a agressão injusta consistente em disparos, a escolha do revólver seria o meio mais adequado para repelir o ataque, pois o canhão seria desproporcionalmente exagerado e a espada poderia ser insuficiente para tanto.

Por outro lado, se o único meio ao dispor da vítima for desproporcional, ela poderá usá-lo com a moderação possível, pois é o único meio necessário disponível (no lugar de dez tiros de canhão, usa apenas um).

Se a vítima reage com excesso, seja pelo uso do meio desnecessariamente desproporcional ou uso imoderado do meio necessário, nasce para o agressor a possibilidade de legítima defesa sucessiva, pois a reação da vítima passa a ser uma agressão injusta.

O excesso pode ser doloso ou culposo, submetendo o agente às respectivas punições.

O excesso, ainda, pode ser intensivo (relativo ao uso de meios desproporcionais) (HUNGRIA; FRAGOSO, 1978) ou extensivo (o que se estende para além da atualidade da agressão). O tema não é unânime na doutrina, mas Bitencourt (2017) afirma que o excesso extensivo nada mais é do que um ato criminoso subsequente, visto que a janela cronológica da legítima defesa real não mais subsiste.

  • Agressão injusta (aggressio injusta) atual ou iminente: a agressão a ser repelida deve ser injusta, ou seja, deve ser fruto de uma atuação ilícita promovida por terceiro. Ela deve ser, ademais, atual (está ocorrendo no mesmo momento) ou iminente (está prestes a ocorrer) e deve ser concreta, e não puramente fictícia ou hipotética. Não se admite uma reação a uma ação passada (isso seria vingança, e não defesa).

A injustiça da ação faz com que atos da natureza, um ataque aleatório de um animal (diferente de um ataque ordenado) ou a agressão de um inimputável não sejam passíveis de reação por legítima defesa.

A doutrina não é unânime, mas, de forma geral, admite-se o estado de necessidade para estas circunstâncias.

Ora, a possível fuga diante da agressão de um inimputável nada tem de deprimente: não é um ato de poltronaria, mas uma conduta sensata e louvável. Assim, no caso de tal agressão, o que se deve reconhecer é o “estado de necessidade”, que, diversamente da legítima defesa, fica excluído pela possibilidade de retirada do periclitante.

hungria; fragoso, 1978, p. 296.

A injustiça da agressão também pode decorrer de ato culposo, visto que a conduta culposa é ilícita e, portanto, injusta.

  • Direito seu ou de outrem: a legítima defesa pode se operar para proteger direito próprio ou alheio. A noção de direito aqui é ampla, abrangendo direitos e bens jurídicos morais e patrimoniais tuteláveis do indivíduo.

O Código, mantendo a posição da sua redação original, não exige a inevitabilidade do confronto. Isso significa que o agente não é obrigado a fugir ou prevenir inteiramente a agressão (commodus discessus).

Não há indagar se a agressão podia ser prevenida ou evitada sem perigo ou sem desonra. A lei penal não pode exigir que, sob a máscara da prudência, se disfarce a renúncia própria dos covardes ou dos animais de sangue frio.

[…]

Nem mesmo há ressalvar o chamado commodus discessus, isto é, o afastamento discreto, fácil, não indecoroso.

HUNGRIA; fragoso, 1978, p. 288-289, 292.

A doutrina admite, ainda, a figura da legítima defesa putativa, que decorre da equivocada representação da situação fática vivida pelo agente, que imagina estar sofrendo ou prestes a sofrer um agressão injusta, e assim reage. Como modalidade erro de tipo, aplica-se a lógica do art. 20: se o erro for perdoável, exclui-se o dolo e o crime; se for imperdoável, responde-se a título de culpa.

Contra a legítima defesa putativa, é possível uma legítima defesa real, mas contra uma legítima defesa real não é possível outra legítima defesa real (a chamada legítima defesa recíproca), pois neste caso há reação lícita, inexistindo injustiça a ser objeto de reação. A doutrina também admite duas posturas de legítima defesa putativa.

Por fim, é interessante observar a existência dos ofendículos, que são mecanismos preordenados para a defesa da propriedade (cercas elétricas, cacos de vidro em muros etc.). A doutrian disputa a natureza desses instrumentos, mas é dominante a visão de que sua colocação é um ato de exercício regular de direito, e sua ativação prática um exercício de legítima defesa da propriedade (ESTEFAM, 2018).

Referências

BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2017.
ESTEFAM, André. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2018.
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 24 – Estado de necessidade real e putativo

Estado de necessidade
Art. 24 – Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.
§ 1º – Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo.
§ 2º – Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.

O estado de necessidade é a primeira causa excludente de ilicitude prevista no rol legal de causas justificantes. É uma circunstânci que, se adimplida, torna lícita a conduta do agente, não subsistindo crime ou punição.

O agente que age albergado pela referida hipótese excludente de antijuridicidade usualmente vê-se em uma situação de necessidade em que lhe é permitido sacrificar ou preterir o bem jurídico alheio na busca de preservar bem jurídico próprio ou de terceiro, quando o sacrifício destes não é razoável para as circunstâncias.

Um exemplo clássico envolve um incêndio em um local fechado onde há um grande aglomerado de pessoas. Diante do risco atual à integridade física de cada um, a violenta corrida para a saída de emergência pode envolver a promoção de atos típicos pelos indivíduos desesperados, notadamente lesões corporais.

Os elementos do estado de necessidade são os seguintes:

  • Um direito ou bem jurídico próprio ou de terceiro: a atuação do agente deve se direcionar ao salvamento do direito próprio ou de terceiro. O indivíduo pode agir para proteger a vida, a integridade física, a propriedade etc.;
  • Inexigibilidade do sacrifício do bem: nas condições concretas, não deve ser razoável o sacrifício do bem jurídico ameaçado;

Por exemplo, se o indivíduo em um naufrágio se apossa de um bote para duas pessoas e, por trazer consigo seu cachorro, pretere a entrada de um segundo indivíduo no bote, estará assumindo um sacrifício desproporcional e desarrazoado, tendo em vista que o sacrifício do bem salvado neste caso seria exigível.

  • A existência de um perigo atual contra esse direito: este bem jurídico deve estar sob perigo atual, presente, concreto, que pode ter sido originado por ação humana ou não. Não se admite um perigo remoto ou cogitável;
  • A externalidade e inevitabilidade desse perigo: esse perigo é externo, não podendo ter sido provocado pelo agente, e deve ser inevitável. Se houver oportunidade de evitar o dano sem sacrificar direito alheio, tal postura é exigida do agente. Dessa forma, a fuga, se cabível, é obrigatória.

O estado de necessidade ainda é classificado em:

  • Estado de necessidade defensivo: o ato do agente sacrifica direito de quem produziu ou contribui para o perigo instaurado.
  • Estado de necessidade agressivo: o ato do agente se volta contra bem ou direito de um inocente do evento.

No Código Penal, o estado de necessidade envolve o sacrifício razoável de um bem. Essa noção tem por trás a comparação entre o bem jurídico protegido e o bem jurídico sacrificado. Nessa comparação, para que a causa de justificação seja adimplinda, o bem jurídico protegido deve ser de igual ou maior importância do que aquele sacrificado.

Se o bem jurídico sacrificado for de maior importância do que aquele efetivamente protegido (como no caso em que se pretere a vida de um terceiro em prol da defesa de um bem patrimonial), o agente será beneficiado com uma redução de sua pena de um a dois terços (1/3 a 2/3). Trata-se de uma causa de diminuição (terceira fase da dosimetria). Não incide propriamente a causa excludente.

[…] a descriminante só deixará de existir se o bem ou interesse posto a salvo, em comparação com o que foi sacrificado, representa, manifestamente, um minus. A avaliação deve ser feita do ponto de vista objetivo, mas sem total abstração do prisma subjetivo. […] Igualmente, não se pode abstrair o estado de ânimo do agente, cujo abalo está na proporção da entidade e instância do perigo. O ponto de referência, também aqui, é o tipo do homem comum ou normal.

hungria; fragoso, 1978, p. 278.

É interessante observar, a título de complemento, que o Código Penal Militar admite também um estado de necessidade exculpante (que exclui a culpabilidade) na hipótese de o bem sacrificado for de valor superior ao protegido e não for exigível conduta diversa:

Estado de necessidade, com excludente de culpabilidade
Art. 39. Não é igualmente culpado quem, para proteger direito próprio ou de pessoa a quem está ligado por estreitas relações de parentesco ou afeição, contra perigo certo e atual, que não provocou, nem podia de outro modo evitar, sacrifica direito alheio, ainda quando superior ao direito protegido, desde que não lhe era razoàvelmente exigível conduta diversa.

Código Penal Militar (Decreto-Lei nº 1.001/69)

Também é possível cogitar a situação de o indivíduo imaginar uma situação de estado de necessidade inexistente:

No estado de necessidade putativo, o agente equivoca-se sobre o mundo fático e pensa estar diante de um perigo atual que ameaça bem jurídico próprio ou de outrem. Trata-se de um erro de tipo que se enquadra nas hipóteses de descriminantes putativas. Se o erro for justificável, não há punição, mas se o erro for injustificável, responderá por culpa o agente, caso o tipo tenha modalidade culposa.

Por fim, aqueles que têm o dever legal de enfrentar o perigo (bombeiros, salva-vidas etc.) não podem suscitar o estado de necessidade.

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 23 – Exclusão de ilicitude ou causas justificantes

Exclusão de ilicitude
Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato:
I – em estado de necessidade;
II – em legítima defesa;
III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.
Excesso punível
Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

O presente artigo lista as hipóteses legais de exclusão de ilicitude, as condutas que estão revestida por permissão legal que torna lícita a conduta, mesmo que típica.

A exclusão de ilicitude emerge na doutrina e na praxe com vários nomes, todos eles com o mesmo sentido: tornar a conduta lícita e justa, excluir a qualidade criminosa ou ilícita da conduta. Vejamos:

a) causas excludentes de ilicitude;

b) causas justificantes ou de justificação;

c) causas excludentes de antijuridicidade;

d) causas excludentes de injuricidade;

e) causas descriminantes;

f) causas excludente de criminalidade (redação original do Código)

g) causas objetivas de exclusão de crime etc.

São elas: o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito. O estudo específico de cada hipótese será estudado nos respectivos artigos.

Estas são circunstâncias que excluem a ilicitude (antijuridicidade) da conduta, tornando-a lícita e impedindo a condenação. Mesmo que a conduta se ajuste no molde fático do tipo criminoso, ela estará albergada por situação justificante.

Pense, por exemplo, no estrito cumprimento do dever legal levado por um policial. Em meio a um tiroteio, ele atira em um bandido que vem a óbito. Em tese a conduta é típica, ele matou alguém, mas o fez sob cobertura de uma causa excludente de ilicitude. Não sendo ilícita, a conduta é típica (“matar alguém”), mas não criminosa.

A ilicitude, como segundo substrato do ato criminoso, diz respeito exatamente à incompatibilidade objetiva com o ordenamento jurídico e à contrariedade com o Direito. Agir em estado de necessidade ou em outra hipótese justificante é algo lícito e permitido pela ordem jurídica. Não há subjetivismo nessa verificação.

A doutrina, por fim, traz uma causa excludente extralegal (que não foi apresentada explicitamente na lei): o consentimento do ofendido. Neste caso, o interesse jurídico disponível e renunciável do ofendido pode ser alvo da ação de terceiro após consentimento.

Autores clássicos viam essa hipótese como supérflua (HUNGRIA; FRAGOSO, 1978), mas a doutrina moderna de forma geral acolhe essa hipótese, citando os casos de esportes violentos ou tatuagens, casos onde lesões ocorrem.

De qualquer forma, o parágrafo único informa que os excessos decorrentes da ação cometida nestas circunstâncias serão sempre puníveis por dolo ou culpa.

De forma geral, o exercício dessas hipóteses excludentes deve ser moderado e proporcional.

A conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial é típica, ainda que em situação de alegada autodefesa.
(Súmula 522, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 25/03/2015, DJe 06/04/2015)

superior tribunal de justiça

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 22 – Coação irresistível e obediência hierárquica

Coação irresistível e obediência hierárquica
Art. 22 – Se o fato é cometido sob coação irresistível ou em estrita obediência a ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da coação ou da ordem.

O presente artigo trata da coação moral irresistível e da obediência hierárquia, duas causas que excluem a culpabilidade do agente e, portanto, o crime no que lhe diz respeito. Mais específicamente, são hipóteses legais de inexigibilidade de conduta diversa.

A exigibilidade de conduta diversa é um requisito ínsito à culpabilidade. Só se pode considerar alguém culpável por certo fato se a pessoa envolvida tivesse oportunidade de agir de forma diversa, forma esta lícita e compatível com o ordenamento jurídico.

No Direito Penal, a coação pode ser moral (vis compulsiva, vis conditionalis, vis animo illata) ou física (vis absoluta, vis atrox, vis corpori illata).

Coagir (do latim coagere) é constranger alguém, por meios físicos ou morais, a um facere ou non facere.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, p. 255

A coação física é aquela em que o indivíduo é despido de qualquer vontade e é forçado, por meio físico, a envolver-se no ato criminoso. O indivíduo é mero instrumento do crime, um paciente que sequer possui, tecnicamente, uma conduta ou nexo causal com o resultado. Nesses casos, sequer há um ato voluntário, sendo atípico o fato em relação a este sujeito.

A coação física irresistível pode ser exemplificada: um indivíduo muito forte força os dedos de outro no gatilho de uma arma; ou, quem sabe, empurra-o para que esbarre em um terceiro que está na beira de um prédio etc.

Já a coação moral irresistível é a que deixa o agente-vítima à mercê da vontade de um terceiro por temor de algum mal que este possa produzir. O agente tem controle de suas ações (e age dolosamente), mas esse controle é viciado pelo temor diante da séria ameaça sofrida.

Nessa hipótese, o coagido não responde pelo crime, mas sim o coator, autor mediato do delito.

O caso mais icônico da coação moral envolve o gerente de banco cuja família foi sequestrada. Ele é obrigado, pelos sequestradores, a extraviar uma quantia dos cofres, sob pena de seus familiares serem executados. Como não se poderia exigir outra conduta do gerente, este não poderá ser punido pelo fato.

Se a coação moral for resistível (por exemplo, o bandido ameaça a quebra de um bem de pequeno valor, caso o agente não pratique o crime) e o agente decidir acatar, este será punido normalmente, pois seria exigível conduta diversa. A seu favor, entretanto, incide uma atenuante genérica:

Art. 65 – São circunstâncias que sempre atenuam a pena:
III – ter o agente:
c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima;

código penal

No que diz respeito à obediência hierárquica, determina o Código que a ordem não pode ser manifestamente ilegal. Adimplido este requisito, o agente não responde, apenas seu superior hierárquico. Caso contrário, poderá se beneficiar da circunstância do art. 65, III, “c”, do Código.

De modo geral, a doutrina aponta apenas a hierarquia legal, pública, como aquela passível de permitir a aplicação da excludente.

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 21 – Erro de proibição ou sobre a ilicitude do fato

Erro sobre a ilicitude do fato

Art. 21 – O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Parágrafo único – Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.

No Direito brasileiro, vige a presunção de conhecimento da lei, não podendo ninguém deixar de cumpri-la alegando o seu desconhecimento. Trata-se de um postulado também previsto na LINDB:

Art. 3o  Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.

Lei de introdução Às normas de direito brasileiro (dec. lei nº 4.657/42)

Mesmo que a pessoa não possa se escusar do cumprimento da lei alegando seu desconhecimento, o Código Penal traz efeitos jurídicos para o erro sobre a ilicitude da conduta. O agente, nesses casos, incide em erro de proibição (o sucessor do chamado erro de direito ou error juris na doutrina clássica).

Diferente do erro de tipo, o erro de proibição ocorre diante da equivocada percepção da ilicitude do ato, do regramento jurídico e das normas proibitivas e permissivas, e não dos fatos em si. Em poucas palavras, o agente pensa que certo procedimento é lícito e legal, quando, na realidade, não o é.

O agente tem correta representação dos fatos, mas equivoca-se sobre a qualidade jurídica de sua conduta. Bitencourt (2018) chama esse fenômeno de consciência profana do injusto, que nada mais é do que o pensamento (consciência) leigo, não jurídico (profano), do injusto. Na esfera profana, leiga, o agente pensa que o ato não é ilícito.

De uma forma geral, a doutrina só aponta a existência do erro de tipo e do erro de proibição. Se a situação pertinente tratar de erro sobre a existência ou contornos dos fatos, teremos um erro de tipo. Se a situação tratar de equívocos sobre as normas, seu conteúdo e extensão, teremos erro de proibição.

O erro de proibição invencível (inevitável, desculpável, escusável) exclui a potencial consciência de ilicitude, que se encontra na culpabilidade do delito. Em outras palavras, o agente não tinha como perceber a ilicitude do fato. Minando a culpabilidade, consequentemente não há crime ou punição.

Diferente do erro de tipo, quando o erro de proibição é evitável, o agente se beneficiará com uma redução de sua pena de um sexto a um terço (1/6 a 1/3).

A potencial consciência da ilicitude diz respeito à possibilidade de o agente, no contexto fático, perceber o caráter ilícito de sua conduta. É a possibilidade de perceber que se está fazendo algo errado, ilícito.

Usualmente, a doutrina aponta ao caso do turista que pensa que o consumo de certa droga é permitida no Brasil. Ele equivoca-se sobre a proibição. Se a Justiça entender que ele, nas condições reais, não tinha como potencialmente entender que o ato era ilícito, será absolvido. Caso contrário, sua pena será reduzida.

Outro exemplo é fornecido por Estefam (2018): o indivíduo acha um relógio na rua e empreende busca pelo dono. Depois de várias tentativas, decide ficar com o bem, pois imagina que o insucesso na busca do dono lhe permite ficar com o bem da coisa perdida. A conduta que ele pensa ser permitida, entretanto, é proibida pelo art. 169, do CP.

O erro de proibição trata da representação equivocada das normas. Uma das formas de se equivocar sobre a norma é imaginar que existe uma causa excludente de ilicitude que, na realidade, não existe. Trata-se da descriminante putativa ou erro de proibição indireto.

Observe a lógica por trás da expressão. Descriminante é a característica de tornar lícito, de excluir o crime, a ilicitude ou a antijuridicidade; putativa é a qualidade de uma coisa ser imaginária, hipotética.

Descriminante putativa, então, é a situação onde o indivíduo imagina que existe na lei uma hipótese excludente de ilicitude para o ato que ele pratica ou que a hipótese existente tem limites mais generosos do que os reais.

O exemplo clássico de descriminante putativa envolve os limites da legítima defesa: o agressor é imobilizado pela vítima, restando inofensivo. A vítima, em seguida, pega a arma do agressor e atinge-o, pensando que a legítima defesa legal permite o ato subsequente, posterior à neutralização da agressão injusta.

Nas descriminantes putativas, segue-se a regra do erro de proibição: se for escusável, exclui a culpabilidade, o crime e a pena; se for inescusável, reduz a pena.

Referências

BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de direito penal. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2018.
ESTEFAM, André. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2018.

Art. 20 – Erro de tipo, descriminantes putativas, erro determinado por terceiro e error in personam

Erro sobre elementos do tipo
Art. 20 – O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
Descriminantes putativas
§ 1º – É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
Erro determinado por terceiro
§ 2º – Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.
Erro sobre a pessoa
§ 3º – O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.

O erro de tipo é o equívoco sobre os elementos que compõem a conduta típica. É a errônea representação do mundo dos fatos, situação que faz com que o elemento subjetivo do agente não se alinhe à realidade efetivamente vivenciada. Essa ruptura ocorre entre o psicológico do agente (que o faz atuar com base em um cenário inexistente) e o a realidade.

É possível destrinchar essas ideias básicas para melhor compreensão através de um exemplo.

Imagine o crime de violação de correspondência: “
Art. 151 – Devassar indevidamente o conteúdo de correspondência fechada, dirigida a outrem:”

A sua tipificação depende da compreensão de certos elementos típicos: a) a devassa; b) a correspondência; c) a condição de estar fechada; e d) o fato de estar dirigida a outrem.

O agente pode se equivocar sobre todos esses elementos, excluindo o dolo necessário à punição pelo crime.

Por exemplo, ele pode pensar que a correspondência é para ele. Talvez ele pode pensar que a correspondência já estava aberta, ou que não se tratava de correspondência, mas de algum panfleto publicitário.

No final das contas, ele representou equivocadamente a realidade, errando sobre elementos do tipo.

Como esse crime não permite modalidade culposa, não há crime, pois não há dolo e, consequentemente, não há tipicidade.

Exemplos: o professor de anatomia golpeia mortalmente o corpo humano vivo, trazido ao anfiteatro, supondo tratar-se de um cadáver (não é punível por homicídio doloso e, se invencível o erro, nem mesmo por homicídio culposo); o visitante leva consigo, ao retirar-se, confundindo-o com o seu, o chapéu de sol do dono da casa (não é punível a título de furto); […]

hungria; fragoso, 19778, p. 226-227.

A ideia por trás de toda modalidade de erro de tipo é, portanto, a equivocada representação do mundo fático. Inclusive, esta é a razão pela qual ele era denominado erro de fato originalmente no Código, mas a melhor técnica fez prevalecer a alcunha atual.

Em qualquer hipótese, é importante frisar que o erro pode ser escusável (perdoável, inevitável, invencível) ou inescusável (imperdoável, evitável, vencível). A depender da modalidade de erro, as consequências jurídicas serão diversas.

O erro de tipo, por exemplo, pode ser essencial ou acidental.

No essencial, sempre há a exclusão do dolo, mas se ele for inescusável, é possível a imputação do correspondente tipo culposo. A essencialidade, no caso, diz respeito aos elementos básicos que tornam a conduta criminosa em si. O agente não sabe que está prestes a cometer um ato típico. Explica Cunha (2016) que, nesses casos, o agente para de agir criminosamente se avisado do erro.

O erro de tipo tem por efeito excluir sempre o dolo, embora possa subsistir a punibilidade a título de culpa, se o erro é inescusável.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, P. 567.

O erro de tipo acidental recai sobre elementos periféricos do crime que se pretende praticar. O intuito do agente é, de fato, criminoso, mas ele erra sobre detalhes do delito que quer cometer. Mesmo que avisado sobre o erro, ele continuaria com a conduta criminosa, apenas retificando o equívoco periférico. Algumas modalidades de erro de tipo acidental serão estudadas oportunamente.

Descriminantes putativas
§ 1º – É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.

O erro também pode incidir sobre a existência fática de uma causa de exclusão de ilicitude. Ou seja, o agente imagina que está em uma situação em que pode agir albergado por uma causa excludente de antijuridicidade (ou seja, uma causa descriminante, que torna sua conduta lícita e, portanto, não criminosa). Ocorre que essa situação descriminante é imaginária (putativa).

O sujeito imagina estar vivenciando situação de estado de necessidade, ou que está sofrendo uma agressão injusta, permitindo sua legítima defesa etc., entretanto, tais causas de exclusão de ilicitude são imaginárias no contexto fático vivido.

O termo putativo significa imaginário, hipotético, decorrente de suposição.

1. Supostamente verdadeiro, sem o ser. (Michaelis)

Exemplos: um indivíduo, por errônea apreciação de circunstâncias de fato, julga-se na iminência de ser injustamente agredido por outro, e contra este exerce violência (legítima defesa putativa). ao falso alarma de incêndio numa casa de diversões, os espectadores, tomados de pânico, disputam-se a retirada, e alguns deles, para se garantirem caminho, empregam violência, sacrificando outros (estado de necessidade putativo); a sentinela avançada mata com um tiro de fuzil, supondo tratar-se de um inimigo, o companheiro d’armas que, feito prisioneiro, consegue fugir e vem de retorno ao acampamento (putativo cumprimento do dever legal); o adquirente de um prédio rural, enganado sobre a respectiva linha de limite, corta ramos da árvore frutífera do prédio vizinho, supondo erroneamente que avançam sobre sua proprieade, além do plano vertical divisório (putativo exercício regular de direito).

hungria; fragoso, 1978, p. 229.

As descriminantes putativas, como espécies do erro de tipo, usualmente denominadas erro de tipo permissivo (pois tratam de equívoco sobre a existência de uma situação que, se existisse, permitiria a conduta), seguem a mesma lógica do erro de tipo essencial anteriormente exposta: sempre excluem o dolo e, se decorrerem de erro vencível, permitem a imputação por culpa.

Cogitemos um exemplo:

O indivíduo A é ameaçado de morte por B. Dias depois, vê o desafeto vindo em sua direção com uma arma. Antes de qualquer interação, A atira preventivamente em B, pensando que este está na iminência de injustamente matá-lo, quando, na verdade, B portava um guarda-chuva e iria apenas desculpar-se pelo evento anterior.

Diante da ameaça prévia, pode-se supor que o erro era invencível, não respondendo A pelo homicídio.

Agora imagine que B apenas havia xingado A por uma disputa futebolística. Se A vem a matar B nas condições já explicadas, claramente estará caindo em um erro facilmente vencível, pois as circunstâncias não fariam supor a iminência de uma iminente agressão.

Erro determinado por terceiro
§ 2º – Responde pelo crime o terceiro que determina o erro.

Em algumas circunstâncias, o erro pode ter sido determinado por conduta de terceiro. Nessas situações, o agente em si muitas vezes atua como mero instrumento do delito maquinado por terceiro, sendo também possível que o terceiro tenha agido com culpa.

Nesses casos, seguimos a regra do erros de tipo essencial: exclui-se o dolo do agente, que poderá responder por culpa se tiver agido com credulidade culpável. O terceiro responderá por dolo ou por culpa, a depender do seu elemento subjetivo.

Um exemplo: se C, querendo matar B, diz para A jogar no triturador industrial um pesado saco de lixo (onde B está, inconsciente), responderá C pelo homicídio de B, não respondendo A pelo evento.

Se o saco estivesse se mexendo e gemendo, por outro lado, esperaria-se de A uma natural desconfiança e prudência. Ao proceder com a conduta sem tomar esse cuidado, age de forma negligente, podendo ser condenado por crime culposo.

Erro sobre a pessoa
§ 3º – O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena. Não se consideram, neste caso, as condições ou qualidades da vítima, senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime.

Outro erro estuado nesse artigo é o erro sobre a pessoa (error in persona), que compreende o equívoco sobre a vítima pretendida pelo autor do crime. A doutrina classifica essa hipótese como um erro de tipo acidental, pois incide sobre aspectos secundários da conduta, persistindo um intuito criminoso mesmo se o agente não estivesse equivocado sobre a realidade (CUNHA, 2016).

O agente pensa que comete o crime contra um indivíduo A quando, na realidade, acaba por cometê-lo em face de B. Nesse caso, irá responder pelo delito como se houvesse praticado-o contra A, seu alvo inicial. Isso impõe a aplicação das circunstâncias agravantes e qualificadoras que correspondem à qualidade da vítima (ex: feminicídio, patricídio etc.).

Referências

CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral. Salvador: JusPODIVM, 2016.
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 19 – Crimes preterdolosos e agravação pelo resultado

Agravação pelo resultado
Art. 19 – Pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde o agente que o houver causado ao menos culposamente.

A lógica por trás do Código Penal é simples: o agente responde pelos eventos a que deu causa dolosa ou culposamente.

Se o resultado da conduta determina uma agravação da pena, esta só será aplicável ao agente se ele houver causado o resultado dolosa ou culposamente.

Essa discussão é especialmente comum no âmbito dos crimes preterdolosos (ou preterintencionais), onde a execução do delito se inicia com uma conduta dolosa direcionada a um resultado menos gravoso, mas o deslinde do iter criminis se dá com um resultado mais grave que deriva de culpa do agente.

No crime preterdoloso há um concurso de dolo e culpa: dolo no antecedente (minus delictum) e culpa no subsequente (majus delictum). Trata-se de um crime complexo, in partibus doloso e in partibus culposo.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, P. 140

Tome-se a lesão corporal seguida de morte (art. 129, §3º), clássico exemplo de crime preterdoloso.

O resultado final foi a morte, mas o agente não quis o resultado morte, nem assumiu o risco de produzi-lo.

Para que o agente seja enquadrado na modalidade preterdolosa (4 a 12 anos), deve ser comprovado que, no contexto da ação, a morte foi ocasionada culposamente.

Então, se duas pessoas brigam na borda de um precipício, ambos com animus laedendi (de lesionar), e, eventualmente, diante de um ataque um deles cai no precipício e morre, será possível imputar o resultado mais grave ao autor do golpe, pois havia previsibilidade do resultado mais grave.

Se o resultado mais grave decorrer de um fortuito qualquer, não há como imputá-lo ao autor, que responderá pela consumação do delito mais ameno que intencionava.

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE. CRIME PRETERDOLOSO OU PRETERINTENCIONAL.
INÉPCIA DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DA CULPA QUANTO AO RESULTADO MORTE. ILEGALIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO 1. Em crimes preterdolosos ou preterintencionais, imprescindível é que a denúncia impute a previsibilidade e culpa no crime consequente, sob pena de indevida responsabilização objetiva em direito penal, com atribuição de responsabilidade apenas pelo nexo causal.
Tendo a denúncia apenas narrado as agressões e o nexo causal com o resultado morte, expressamente não desejado pelos recorrentes, mas deixando de descrever o elemento subjetivo culposo no resultado morte, tem-se como inepta a peça acusatória para persecução por este crime.
Recurso em habeas corpus provido, a fim de declarar a inépcia da denúncia quanto ao crime preterdoloso (art. 129,§ 3º do CP), sem prejuízo do oferecimento de nova peça acusatória, inclusive por aditamento, desde que preenchidas as exigências legais do art. 41 do Código de Processo Penal.

stj – RHC 59.551/SP, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 09/08/2016, DJe 23/08/2016.

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

Art. 18 – Crime doloso e culposo

Art. 18 – Diz-se o crime:
Crime doloso
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;
Crime culposo
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único- Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

Culpa e dolo são elementos subjetivos que integram a tipicidade da conduta. São os estados psicológicos e anímicos que delineiam a intenção do agente e permitem a configuração do fato tipificado na lei.

Ao se tratar de dolo e culpa, algumas expressões são comuns, como: a) estado anímico (“estado da alma”); b) estado psíquico ou psicológico; c) elemento subjetivo; d) culpabilidade em sentido amplo; e) volição etc. São em geral expressões que denotam o processo interno do agente e mostram a refutação de responsabilidade penal objetiva (aquela que prescinde de culpa ou dolo do agente).

Um estudo fracionado dessas figuras é sugerido.

Art. 18 – Diz-se o crime:
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo;

Parágrafo único- Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

O dolo é a união da representação do resultado (consciência, estado cognitivo) de uma conduta e da vontade (volição) de querer praticar essa conduta. No Código Penal, o dolo é natural ou neutro, portanto, não possui elementos normativos em seu teor, como fazem algumas teorias.

Apenas como acréscimo, saiba-se que a teoria normativa do dolo afirma que o dolo depende, além da representação do resultado e da vontade em atingi-lo, de uma consciência da antijuridicidade (ilicitude) da conduta. Esse elemento, modernamente, foi excluído do tipo doloso e passou à culpabilidade. A visão predominante na doutrina hoje é a do dolo natural ou neutro.

Como regra, as condutas tipificadas no Código Penal correspondem aos crimes dolosos. A punição por conduta culposa deve ser explicitamente prevista para ser aplicada.

O artigo confirma a adoção tanto da teoria da vontade como da teoria do consentimento para confirmar a existência do dolo. Pela primeira, o dolo se verifica na conjunção de representação do resultado e da vontade de alcançá-lo (dolo direto). Na segunda, o dolo deriva da representação do resultado mais o consentimento de atingi-lo, mesmo que este não seja o interesse direto do agente (dolo eventual).

A consequência jurídica é a mesma: a punição. Para Hungria (1978, p. 115): “Ora, consentir no resultado não é senão um modo de querê-lo.”.

Na doutrina, são múltiplas as facetas atribuídas à conduta dolosa, algumas classificações podem ser ressaltadas, devendo ser mencionado, entretanto, que, em geral, essas classificações decorrem de ponderações doutrinárias sem maiores repercussões na aplicação prática do Direito Penal.

  • Dolo de dano: aquele típico do crime material, dirigido à produção da lesão ao bem jurídico protegido;
  • Dolo de perigo: aquele típico do crime de perigo, que se consuma com a causação de perigo. Quer o agente pôr o bem jurídico em perigo;
  • Dolo genérico: aquele que prescinde de qualquer fim particular.
  • Dolo específico: aquele que almeja um fim especial ou determinado previsto determinado na lei incriminadora (Ex: receptação de animal em comparação com a receptação comum).

As noções de dolo genérico e específico hoje são refutadas por parte da doutrina, prevalecendo simplesmente a ideia de que as finalidades específicas previstas no tipo são elementos subjetivos específicos (ESTEFAM, 2018).

  • Dolo de propósito: é o dolo acompanhado por uma premeditação, uma deliberação do agente.
  • Dolo de ímpeto: é o dolo passional, que acompanha uma emoção ou reação súbita do agente.
  • Dolo direto de primeiro grau (imediato): é aquele típico, dirigido exclusivamente ao resultado imediato buscado.
  • Dolo direto de segundo grau ou de consequências: é aquele dolo voltado às consequências necessárias da conduta criminosa, tendo em vista os meios escolhidos.

Em relação ao dolo de segundo grau, a doutrina aponta como caso típico o do terrorista que, visando assassinar um estadista, explode o avião em que este se encontra. Pelo meio escolhido, ele está diretamente ciente e interessado no óbito de todos os outros passageiros, visto que esta é uma consequência natural do meio escolhido.

É importante ressaltar a diferença desta figura em relação ao dolo eventual, pois neste o resultado não é consequência necessária da ação, mas sim uma possibilidade com que o agente aceita.

  • Dolo alternativo: é o dolo do agente que, com sua ação, busca produzir um resultado ou outro, existindo dentro da volição autoral a realização dos resultados possíveis.
  • Dolo geral: é o dolo que abrange o resultado final causado por uma conduta subsequente à conduta inicial do agente. Este pensa erroneamente ter atingido o objetivo com a conduta prévia, mas é a conduta subsequente que realmente alcança o objetivo.

O exemplo clássico do dolo geral (dolus generalis) envolve o crime de homicídio: o agente dispara contra o desafeto, atingindo-o e supondo tê-lo matado, mas o mesmo permanece vivo. Em seguida, o criminoso, buscando destruir a evidência da materialidade, joga o corpo num rio, vindo a vítima a morrer afogada. Como o resultado foi obtido, mesmo que por forma distinta da pretendida pelo autor, o seu dolo abrange de forma geral seus atos, sendo possível a punição pela consumação.

Art. 18 – Diz-se o crime:
II – culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.
Parágrafo único- Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.

O crime culposo é aquele que deriva de uma conduta imprudente, negligente ou imperita, explicando a doutrina que essas figuras são interpenetráveis, muitas vezes se aproximando.

  • Imprudência: é o agir afoito, sem pensar, sem ponderamento prévio.
  • Negligência: é o desleixo com as precauções anteriores, é a omissão de se tomar certos cuidados prévios exigidos pela praxe.
  • Imperícia: é uma espécie de imprudência profissional. É o censurável agir desamparado das qualificações e do conhecimento técnico exigido para um ato.

A doutrina discute, ainda, graus de culpa: levíssima, leve ou grave. Essa divisão diz mais respeito à intensidade da reprimenda (dosimetria da pena) que poderá ser aplicada.

A ordem jurídica não pode renunciar à punibilidade do delinquente culposo; é este um desasustado à disciplina social. Falta-lhe constância na preocupação que, no convívio social, deve ter todo homem responsável, no sentido do neminem laedere ou de se evitar a lesão ou periclitação do interesse de seus concidadãos.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, P. 201.

O elemento básico da reprovação do crime culposo é a previsibilidade do resultado, o que o tornaria evitável se os cuidados e diligências exigidas pela lei fossem tomados. Se o resultado era imprevisível, não há que se falar em crime, entrando aquele nas raias do caso fortuito e da força maior.

A previsibilidade é uma característica genérica e diz respeito à simples possibilidade de se prever um resultado. Em outras palavras, previsibilidade existe quando o agente pode, segundo a experiência geral, representar (prever) um resultado (HUNGRIA; FRAGOSO, 1978).

A previsão, por outro lado, é uma questão concreta e diz respeito à efetiva previsão ou falta de previsão desse resultado no caso concreto.

Com base na previsibilidade, duas espécies de culpa podem ser verificadas: a culpa inconsciente (mais comum) e a consciente. No primeiro caso, há previsibilidade, mas o agente concretamente não previu o resultado, gerando-o. No segundo, o agente prevê o resultado, mas acredita que este não se realizará.

Diante da previsão do resultado, a doutrina menciona a aproximação entre a culpa consciente e o dolo eventual, mas distancia-os na abordagem desse resultado previsto:

Sensível é a diferença entre essas duas atitudes psíquicas. Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o agente presta anuência ao advento desse resultado, preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente repele, embora inconsideradamente, a hipótese de superveniência do resultado, e empreende a ação na esperança ou persuação de que este não ocorrerá.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, p. 116-117.

Em certas situações, a lei prevê tipos penais que correspondem a uma conduta complexa, iniciada de forma dolosa, mas atingindo um resultado culposo. É o que se denomina preterdolo:

No crime preterdoloso há um concurso de dolo e culpa: dolo no antecedente (minus delictum) e culpa no subsequente (majus delictum). Trata-se de um crime complexo, in partibus doloso e in partibus culposo. A diferença que existe entre o crime preterdoloso e o crime culposo está apenas em que neste o evento antijurídico não querido resultad de um fato penalmente indiferente ou, quando muito, contravencional, enquanto naquele o resultado involuntário deriva de um crime doloso.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, P. 140.

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.
ESTEFAM, André. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2018.

Art. 17 – Crime impossível ou tentativa inidônea

Crime impossível
Art. 17 – Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.

O crime impossível representa uma situação de atipicidade decorrente da ineficácia absoluta do meio ou da absoluta impropriedade do objeto, situações que tornam impossível a consumação do delito. Nestes casos, não há lesividade perante o bem jurídico protegido, inexistindo também punição.

O crime impossível também é denominado de tentativa inidônea ou inadequada.

Essa inadequação pode decorrer da ineficácia absoluta do meio ou da absoluta impropriedade do objeto.

A ineficácia absoluta do meio diz respeito ao instrumento escolhido pelo agente para o fim criminoso. Este meio deve ser essencialmente ineficaz para a produção do resultado pretendido. Um exemplo: o indivíduo, querendo lesionar alguém, desfere um golpe com uma faca de brinquedo, retrátil.

A absoluta impropriedade do objeto diz respeito ao objeto ou alvo sobre o qual recai a conduta criminosa. Esse objeto deve ser, por natureza ou condição, incompatível com o resultado buscado (como um cadáver para o homicídio ou a mulher não grávida para o aborto).

Para o Código, a inidoneidade deve ser absoluta, adotando aquele a teoria objetiva temperada (ou intermédia). Assim, a inidoneidade relativa ainda permite a punição da tentativa. Explica Hungria:

Dá-se a inidoneidade relativa do meio quando este, embora normalmente capaz de produzir o evento intencionado, falha no caso concreto, por uma circunstância acidental na sua utilização. Exemplo: um indivído visa ao seu adversário com um revólver e dá ao gatilho, mas a arma nega fogo.

HUNGRIA; FRAGOSO, 1978, p. 100.

Sistema de vigilância realizado por monitoramento eletrônico ou por existência de segurança no interior de estabelecimento comercial, por si só, não torna impossível a configuração do crime de furto.
(Súmula 567, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/02/2016, DJe 29/02/2016)

Superior tribunal de justiça

Também é possível verificar inidoneidade relativa no que diz respeito ao objeto. Um caso seria, por exemplo, a entrega de um veneno ao indivíduo que, tempos antes, tomou remédio ou substância química que, coincidentemente, neutraliza os efeitos do veneno.

Nas situações de inidoneidade relativa, o bem jurídico existia e foi exposto a uma lesividade real, o que permite a punição.

Referências

HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Cláudio. Comentários ao código penal. v. 1, tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1978.

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