Ciências jurídicas e temas correlatos

Autor: Victor Augusto Page 26 of 27

Cifras e “cores” criminais

Na Criminologia e no Direito Penal, são comuns classificações que dizem respeito às estatísticas e à qualidade social imputada ao agente delituoso.

A doutrina, assim, emprega “cores” para identificar alguns desses delitos e como os mesmos integram as estatísticas oficiais dos órgãos de repreensão.


Cifra negra e crimes do colarinho azul

A cifra negra é, resumidamente, o conjunto de crimes não comunicados aos órgãos de segurança, fugindo da ciência do Estado e esquivando-se do ius puniendi. É uma realidade que dificulta a eficácia das políticas criminais, da organização da segurança pública e até mesmo da elaboração normativa em âmbito criminal.

Nesse sentido, convém diferenciar a criminalidade real da criminalidade revelada e da cifra negra: a primeira é a quantidade efetiva de crimes perpetrados pelos delinquentes; a segunda é o percentual que chega ao conhecimento do Estado; a terceira, a porcentagem não comunicada ou elucidada.

PENTEADO FILHO, 2012.

Tradicionalmente a cifra negra diz respeito a crimes “comuns”, “de rua”, como pequenos furtos, roubos ou até mesmo crimes sexuais, nos quais é mais frequente uma carência de comunicação às autoridades (subnotificação).

A classificação “crimes do colarinho azul” mantém certa relação com tal cifra, pois remete aos crimes usualmente associados à parcela mais pobre da população.

São denominados crimes do colarinho azul em alusão ao uniforme que era utilizado por operários norte-americanos no início do século XX, então chamados blue-collars.

CUNHA, 2016, p. 175.

Cifra dourada e crimes do colarinho branco

A cifra dourada também representa uma situação de impunidade provocada por omissão ou falta de comunicação e registro de condutas criminosas. Entretanto, trata-se de cifra normalmente associada a crimes do colarinho branco, nos quais o poder político e econômico pode vir a fomentar elevado grau de impunidade.

Nesse substrato, inserem-se os inauditos esquemas de corrupção, crimes ambientais, crimes contra o sistema financeiro e outros delitos contra a Administração Pública.

O termo “crimes do colarinho branco” é cunhado por Edwin Sutherland, e faz referência visual às vestimentas finas do alto-escalão da sociedade.


Complemento

Estudiosos também mencionam outras facetas do fenômeno criminológico.

A cifra amarela, por exemplo, seria a falta de comunicação e apuração de delitos cometidos por membros das próprias organizações policiais, tendo em vista o medo de represálias ou vingança corporativa.

Defende-se aqui a hipótese de que há uma cifra amarela, um número considerável de violências policiais contra a sociedade que, por temor de retaliações ou de uma prática vingativa por parte da corporação, não realizam as denúncias.

AZEVEDO, online.

Também se fala em cifra verde, relativa a delitos cometidos contra o meio ambiente, mas que não chegam ao conhecimento dos órgãos públicos.


Referências

AZEVEDO, José Eduardo. Polícia militar: a mecânica do poder. Disponível online.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal: parte geral. Salvador: JusPodivm, 2016.
PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual esquemático de criminologia. São Paulo: Saraiva, 2012, e-book).

Usucapião e suas modalidades e requisitos

A usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade móvel e imóvel. Também é usualmente nomeada de prescrição aquisitiva, pois dá-se a constituição de um direito (aquisição, portanto) após um certo decurso temporal (conforme fenômeno prescritivo), diferentemente da típica consequência da prescrição (extintiva), que é o de fulminar a pretensão jurídica do indivíduo (embora a prescrição aquisitiva implique a extinção de direito alheio).

Parte da doutrina entende modernamente o fenômeno como consequência da função social da propriedade, prestigiando o indivíduo que de fato deu finalidade ao bem do qual tem posse. Também elencam-se as noções de segurança jurídica e estabilização das situações de fato.

É de se ressaltar que o acúmulo dos requisitos formais abaixo descritos é o suficiente para constituir o direito do possuidor. Eventual decisão judicial que posteriormente venha a dar procedência ao pedido do mesmo terá mera natureza declaratória (ou seja, apenas ratifica uma situação jurídica já existente, possibilitando também o devido registro formal):

Art. 1.241. Poderá o possuidor requerer ao juiz seja declarada adquirida, mediante usucapião, a propriedade imóvel.

Código Civil

Elementos típicos

Além de pressupostos básicos como a capacidade do indivíduo para os atos da vida civil e a possibilidade de a coisa ser usucapida, toda modalidade de usucapião tem outros dois requisitos imprescindíveis, cujas extensões variam de acordo com a modalidade estudada. São eles: a posse e o decurso do tempo. Algumas espécies possuem outros elementos finalísticos ou objetivos necessários.

Posse ad usucapionem

A posse pertinente à usucapião é a denominada posse ad usucapionem, aquela exercida continua, pacifica , pública e incontestadamente por quem tenha a intenção de ser dono
(animo domini)
.

Dessa forma, não se admite uma posse intermitente ou contestada. Também não se cogita que o mero detentor ou a exercida sem animo domini se beneficie da usucapião.

Por exemplo, o locatário é possuidor direito, tendo inclusive direito possessório contra o proprietário, mas não capacidade de usucapir. Igualmente, o detentor (como o motorista do proprietário do carro) tem a detenção (é fâmulo da posse), não podendo usucapir.

A posse ad usucapionem é aquela que se exerce com intenção de dono – cum animo domini. Este requisito psíquico de tal maneira se integra na posse, que adquire tônus de essencialidade. De início, afasta-se a mera detenção, pois, conforme visto acima (nº 285, supra) não se confunde ela com a posse, uma vez que lhe falta a vontade de tê-la. E exclui, igualmente, toda posse que não se faça acompanhar da intenção de ter a coisa para si – animus rem sibi habendi […] (PEREIRA, 2017)

Decurso de tempo

É o decurso temporal previsto em lei para que se dê a aquisição.

No tópico temporal, também é possível a junção da posse do sucessor com a posse do antecessor.

Art. 1.243. O possuidor pode, para o fim de contar o tempo exigido pelos artigos antecedentes, acrescentar à sua posse a dos seus antecessores (art. 1.207), contanto que todas sejam contínuas, pacíficas e, nos casos do art. 1.242, com justo título e de boa-fé.

CÓDIGO CIVIL

Sobre o assunto:

Acessão da posse. Não se exige que, pelo tempo necessário, a coisa seja possuída pela mesma pessoa. Permite a lei que o prescribente faça juntar à sua a posse do seu antecessor – accessio possessionis, observando-se que: a) na sucessão a título universal, dá-se sempre a acessão; b) na que se realiza a título singular, o usucapiente pode fazer a junção, contanto que sejam ambas aptas a gerar a usucapião. Destarte, a posse do antecessor não acede à do usucapiente se era de má-fé; nem ocorre a accessio temporis se o atual possuidor não é sucessor do antigo (PEREIRA, 2017).

É necessário observar que, na linha cronológica, são admitidas as mesmas hipóteses de interrupção e suspensão da prescrição, conforme art. 1.244, do Código Civil:

Art. 1.244. Estende-se ao possuidor o disposto quanto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição, as quais também se aplicam à usucapião.

CÓDIGO CIVIL

Suponha, portanto, que um diplomata tem um imóvel no Brasil, mas encontra-se há anos no estrangeiro, à serviço da União. O imóvel é invadido e o indivíduo passa longos anos no mesmo. A usucapião é impossível pois não corre prescrição contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Município (art. 198, II, do Código Civil). O mesmo se aplica aos incapazes do art. 3º, do Código Civil (art. 198, I) e combatentes em tempo de guerra (art. 198, III).

Modalidades

São as seguintes as espécies de usucapião previstas no Código Civil:

Usucapião extraordinária

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

CÓDIGO CIVIL

Ainda quanto à moradia, não é condição que o prédio tenha sido construído pelo usucapiente. A morada, portanto, pode ser preexistente. A teleologia da Lei Civil, neste ponto, é de valorizar a morada e não de induzir a sua construção (NADER, 2016).

O que se percebe é que nos dois casos não há necessidade de se provar a boa ­fé ou o justo título, havendo uma presunção absoluta ou iure et de iure da presença desses elementos. O requisito, portanto, é único, isto é, a presença da posse que apresente os requisitos exigidos em lei (TARTUCE, 2017).

Usucapião ordinária

Nesta hipótese, o indivíduo possui boa-fé e justo título, ou seja, evidência de fato jurídico que justifique sua posse, como um termo de contrato.

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.
Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

CÓDIGO CIVIL

Assim, se a compra e venda, a doação, a arrematação, etc., transmitem a propriedade (em tese), constituem título justo para a aquisição per usucapionem no caso de ocorrer uma falha, um defeito, um vício formal ou intrínseco, que lhe retirem aquele efeito na hipótese. Inquinado, porém, de falha, não mais poderá ser atacado, porque o lapso de tempo decorrido expurgou-­o da imperfeição, e consolidou a propriedade no adquirente (PEREIRA, 2017).

Usucapião especial rural (pro labore)

Os seus requisitos específicos são delineados pelo dispositivo abaixo:

Art. 1.239. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

CÓDIGO CIVIL

Ressalte-se que essa modalidade de usucapião tem assento constitucional:

Art. 191. Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.
Parágrafo único. Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião.

Constituição Federal de 1988

Usucapião especial urbana (habitacional)

Outra modalidade que tem características especiais, de acordo com as peculiares situações fáticas vividas pelo possuidor.

Art. 1.240. Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil.
§ 2o O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

CÓDIGO CIVIL

Igualmente com o que ocorre com a usucapião especial rural, a urbana tem previsão constitucional (art. 183) e se encaixa no direcionamento constitucional da política urbana brasileira, que, conforme art. 183, “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.”.

É relativa a presunção de hipossuficiência do autor em ação de usucapião especial urbana e, por isso, é ilidida a partir da comprovação inequívoca de que o autor não pode ser considerado “necessitado” nos termos do parágrafo único do art. 2º Lei n. 1.060/1950. (STJ – Informativo nº 599 – Publicação: 11 de abril de 2017. Órgão: TERCEIRA TURMA. Processo: REsp 1.517.822-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 24/2/2017).

STJ

Usucapião familiar (“especialíssima” ou por abandono do lar)

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

CÓDIGO CIVIL

Possibilidade inserida em 2011, permitindo que o cônjuge ou companheiro adquira por usucapião parte de imóvel que dividia com consorte que abandonou o lar.

É evidente que, se a saída do lar, por um dos cônjuges, tiver sido determinada judicialmente, mediante, por exemplo, o uso das medidas previstas no art. 22 da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), não estará caracterizado o abandono voluntário exigido pela nova lei (NADER, 2016).

Usucapião de bem móvel

Trata-se de hipótese bem mais simples, apresentando modalidade ordinária e extraordinária com base simplesmente na presença de boa-fé e título justo.

Art. 1.260. Aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.
Art. 1.261. Se a posse da coisa móvel se prolongar por cinco anos, produzirá usucapião, independentemente de título ou boa-fé.
Art. 1.262. Aplica-se à usucapião das coisas móveis o disposto nos arts. 1.243 e 1.244.

CÓDIGO CIVIL

A ressalva final diz respeito à acessão de posse (ou seja, o ato de juntar as posses) e fatos impeditivos, suspensivos e interruptivos dos prazos.

Complementações

STF – Súmula 237: O usucapião pode ser argüido em defesa.

STF

O imóvel da Caixa Econômica Federal vinculado ao Sistema Financeiro de Habitação deve ser tratado como bem público, sendo, pois, imprescritível. (STJ – Informativo nº 0594. Publicação: 1º de fevereiro de 2017. Órgão: TERCEIRA TURMA. Processo: REsp 1.448.026-PE, Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe: 21/11/2016).

STJ

O § 5º do art. 219 do CPC (“O juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”) não autoriza a declaração, de ofício, da usucapião. (STJ – Informativo nº 560. Período: 17 de abril a 3 de maio de 2015. Órgão: QUARTA TURMA. Processo: REsp 1.106.809-RS, Rel. originário Min. Luis Felipe Salomão. DJe: 27/4/2015).

STJ

A decisão que reconhece a aquisição da propriedade de bem imóvel por usucapião prevalece sobre a hipoteca judicial que anteriormente tenha gravado o referido bem. Isso porque, com a declaração de aquisição de domínio por usucapião, deve desaparecer o gravame real constituído sobre o imóvel, antes ou depois do início da posse ad usucapionem, seja porque a sentença apenas declara a usucapião com efeitos ex tunc, seja porque a usucapião é forma originária de aquisição de propriedade, não decorrente da antiga e não guardando com ela relação de continuidade. Precedentes citados: AgRg no Ag 1.319.516-MG, Terceira Turma, DJe 13/10/2010; e REsp 941.464-SC, Quarta Turma, DJe 29/6/2012. (STJ – Informativo nº 0527 – Período: 9 de outubro de 2013. Órgão: QUARTA TURMA. REsp 620.610-DF, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 3/9/2013).

STJ

Usucapião extrajudicial no CPC/2015

O Código de Processo Civil de 2015, por sua vez, extinguiu o rito especial da ação de usucapião e consagrou a possibilidade da usucapião administrativa em seu
art. 1.071, que acresce o art. 216­-A à Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73). De acordo com a nova sistemática, ampliou-­se o espectro do procedimento extrajudicial da usucapião que, agora, passa a abarcar todo e qualquer pedido em que haja consenso entre o possuidor e demais interessados (confrontantes, proprietário, titulares de direitos reais sobre o imóvel, entre outros) (PEREIRA, 2017, recurso digital).

Usucapião urbana coletiva

Conforme art. 10, do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001):

Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.
§ 1o O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas.
§ 2o A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis.
§ 3o Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas.
§ 4o O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio.
§ 5o As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.

Estatuto da cidade

Referências

NADER, Paulo. Curso de direito civil: direito das coisas. Rio de Janeiro: Forense, 2016, recurso digital.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 4. Rio de Janeiro: Forense, 2017, recurso digital.
TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. São Paulo: MÉTODO, 2017, recurso digital.

Questões

(TRF – 4ª REGIÃO – Juiz Federal Substituto – 2016): Assinale a alternativa INCORRETA acerca da usucapião de bens imóveis:

a) O prazo da usucapião extraordinária é de 10 anos, podendo ser reduzido para 5 anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel sua moradia habitual ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

15 anos, reduzível para 10.

b) O prazo da usucapião especial por abandono do lar, também conhecida como conjugal, é de 2 anos.

 

Correto. Art. 1.240-A.

c) O prazo da usucapião pro labore, também conhecida como especial rural, é de 5 anos.

 

Correto. Art. 1.239.

d) O prazo da usucapião documental, também conhecida como tabular, é de 5 anos.

 

Correto. É a usucapião ordinária com base em título com registro em cartório, mas cancelado posteriormente (art. 1.242, p. único).

e) O prazo da usucapião especial coletiva de bem imóvel, previsto no Estatuto das Cidades, é de 5 anos.

 

Correto. Mesmo prazo da especial urbana individual.

(CESPE – TJ-BA – Titular de Serviços de Notas e de Registros – 2013) Em relação à usucapião, assinale a opção correta:

a) Aquele que conservar a posse em nome do proprietário poderá, após quinze anos sem interrupção, adquirir a propriedade do bem, e, inclusive, realizar requerimento ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no cartório de registro de imóveis.

 

A “posse” em nome de terceiro é mera detenção, não possibilitando usucapião.

b) Aquele que possuir coisa móvel como sua, durante três anos, contínua e ininterruptamente e sem oposição, com justo título e boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade.

 

Correto. Art. 1.260.

c) Em se tratando de usucapião ordinária, o justo título pode ser substituído pela boa-fé, sendo ambos requisitos alternativos dessa modalidade derivada de aquisição da propriedade.

 

São requisitos concomitantes, cumulativos.

d) Adquirida a propriedade por meio de usucapião especial e existindo direito real de garantia sobre o imóvel, o gravame subsistirá em razão de a natureza da obrigação ser propter rem.

 

Como forma originária de aquisição, desfaz os ônus anteriores.

e) O imóvel cujo proprietário seja menor de dezesseis anos de idade é passível de aquisição por usucapião, modo originário de aquisição, adquirindo o possuidor a coisa sem qualquer limitação imposta ao antigo proprietário.

 

Trata-se de absolutamente incapaz, não podendo sofrer usucapião.

(CESPE – DPE-TO – Defensor Público – 2013): Para a aquisição da propriedade imobiliária por intermédio da usucapião constitucional rural:

a) o usucapiente pode ser proprietário de imóvel rural ou urbano, desde que tenha a posse da área objeto da usucapião por cinco anos ininterruptos.

 

Não pode ter outro imóvel nas modalidades especiais.

b) o usucapiente deve ter o animus domini bem como moradia na área objeto da usucapião.

 

Correto. Animus domini para todas as modalidades de usucapião. Na especial, a moradia também é necessária.

c) a área objeto da usucapião deve estar cultivada, sem necessidade de animus domini do usucapiente.

 

Necessidade de produtividade E ânimo de domínio.

d) o imóvel objeto da usucapião constitucional rural pode ser um imóvel público.

 

Pode não.

e) o usucapiente pode ser proprietário de imóvel rural, e a área objeto da usucapião não pode ser superior a cinquenta hectares.

 

Não pode ter outro imóvel.

Velocidades do Direito Penal

A teoria das velocidades do Direito Penal, proposta por Jesús-María Silva Sánchez, diz respeito, em essência, às mudanças de postura e aplicação do Direito Penal no curso do tempo, com flexibilizações para certos ilícitos (como o consumo próprio de drogas, art. 28, da Lei de Drogas) ou a intensificação da punição e de critérios de apuração para outros delitos mais gravosos.

Essas duas posturas evidenciam a existência de dois blocos: o dos ilícitos que acatam pena de prisão, e o dos ilícitos que admitem outras penas. De início, essa dualidade aponta duas velocidades do direito penal, a identificar uma espécie de proporcionalidade de resposta em face do ilícito, satisfazendo a finalidade do Direito Penal compativelmente com cada caso concreto:

Quanto à primeira velocidade do direito penal, deve ser aplicado os conceitos do direito penal clássico às imputações também clássicas, aplicando-se a estas, todas as garantias conquistadas ao longo da evolução humana e, reservando-se às mesmas, a pena privativa de liberdade.
Sob a perspectiva do direito penal de segunda velocidade, tendo em vista a moderna sociedade de risco, seria possível uma flexibilização das regras e garantias individuais, tendo em vista a não sujeição à pena privativa de liberdade, a fim de que o direito penal possa atingir seu fim. (GOMES, 2009, p. 78).

A doutrina ainda aborda uma chamada terceira velocidade, correspondente com a noção de Direito Penal do inimigo, proposto por Günther Jakobs. Para o mesmo, o inimigo é o indivíduo consistente e deliberadamente averso à norma jurídica, à estrutura social e Estatal, razão pela qual deve carecer das garantias comezinhas conferidas aos demais cidadãos.

Trata-se de uma visão afeita ao Direito Penal do autor (ou seja, o Direito penal que presta mais atenção ao infrator do que ao fato cometido).
Em termos de velocidade, explica a doutrina:

E, nesse contexto, o Direito Penal do inimigo seria definido por Silva Sánchez como a terceira velocidade do Direito Penal: privação da liberdade e suavização ou eliminação de direitos e garantias penais e processuais.
Como não poderia ser diferente, essa proposta recebe inúmeras críticas, fundadas principalmente na violação de direitos e garantias constitucionais e legais. (MASSON, 2015).

Complementação

Ainda se fala em quarta velocidade, o neopunitivismo, atribuída a Daniel Pastor e conectada com a influência de cortes penais internacionais, sobrepondo o sistema garantista interno para trazer o infrator ao âmbito internacional.

Esta visión del poder punitivo, catalogada aquí como neopunitivismo, es la que inspira también al llamado “derecho penal de los derechos humanos”. En este ámbito organismos internacionales de protección y organizaciones de activistas consideran, de modo sorprendente por lo menos, que la reparación de la violación de los derechos humanos se logra primordialmente por medio del castigo penal y que ello es algo tan loable y ventajoso que debe ser conseguido sin controles e ilimitadamente, especialmente con desprecio por los derechos fundamentales que como acusado debería tener quien es enfrentado al poder penal público por cometer dichas violaciones. Se cree, de este modo, en un poder penal absoluto. (PASTOR, 2006).

O neopunitivismo relaciona-se ao Direito Penal Internacional, caracterizado pelo alto nível de incidência política e pela seletividade (escolha dos criminosos e do tratamento dispensado), com elevado desrespeito às regras básicas do poder punitivo, a exemplo dos princípios da reserva legal, do juiz natural e da irretroatividade da lei penal. No conflito entre países, os vencedores são os julgadores dos Estados derrotados, como aconteceu nos tribunais internacionais ad hoc para Ruanda e para a antiga Iugoslávia. (MASSON, 2015).

No Brasil, o Estatuto de Roma foi admitido e promulgado pelo Decreto nº 4.388/02, sendo interessante verificar algumas qualidades desse âmbito de punição. No caso do Tribunal Penal Internacional, existem algumas flexibilizações, mas permanecem vigentes princípios básicos como a irretroatividade e a presunção de inocência.

Decreto nº 4.388/02
Artigo 29 – Imprescritibilidade: Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem.
Artigo 77 – Penas Aplicáveis: 1. Sem prejuízo do disposto no artigo 110, o Tribunal pode impor à pessoa condenada por um dos crimes previstos no artigo 5o do presente Estatuto uma das seguintes penas: a) Pena de prisão por um número determinado de anos, até ao limite máximo de 30 anos; ou b) Pena de prisão perpétua, se o elevado grau de ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem

Referências

GOMES, Thiago Quintas. Direito penal na era global: garantismo positivo ajustado ao garantismo negativo. Dissertação de mestrado. PUC-SP, 2009.
MASSON, Cléber. Direito penal: parte geral. São Paulo: Método, 2015, recurso digital.
PASTOR, Daniel. La deriva neopunitivista de organismos y activistas como causa del desprestigio actual de los derechos humanos. 2006. Disponível online.

Questões

PUC-PR – TJ-MS – Juiz Substituto (2012): Marque a alternativa CORRETA sobre as teorias das velocidades do direito penal:

A) A teoria da primeira velocidade do direito penal é ligada à ideia do direito penal do inimigo, ou seja, tem como proposição a aplicação de um direito penal máximo, com penas privativas de liberdades e de caráter perpétuo.

Primeira velocidade: tradicional, pena de prisão.

B) A teoria da segunda velocidade do direito penal é ligada à ideia do direito penal do inimigo, ou seja, tem como proposição a aplicação de um direito penal máximo, com penas privativas de liberdades e de caráter perpétuo

Segunda velocidade: Flexibilização, penas alternativas.

C) A teoria da terceira velocidade do direito penal tem como fundamento a aplicação de penas alternativas ou de multa, ou seja, está ligada à ideia de um direito penal de mínima intervenção.

Terceira velocidade: direito penal do inimigo.

D) A teoria da quarta velocidade do direito penal está ligada à ideia do neopunitivismo.

Correto.

E) A terceira velocidade do direito penal, idealizada por Jesus María Silva Sánchez, está ligada à ideia do Tribunal Penal Internacional, ou seja, à proposição de um direito penal para julgar crimes de guerra, de agressão, genocídio e de lesa humanidade.

Quarta velocidade.

 

MPE-SC – Promotor de Justiça (2013): Em sede de Política Criminal, o Direito Penal de segunda velocidade, identificado, por exemplo, quando da edição das Leis dos Crimes Hediondos e do Crime Organizado, compreende a utilização da pena privativa de liberdade e a permissão de uma flexibilização de garantias materiais e processuais.

Certo

Errado. Esses diplomas mais rigorosos se aproximam da terceira velocidade.

Errado

Exato.

Concepções da constituição

No âmbito de estudos da teoria da constituição, tópico recorrente diz respeito às concepções da constituição. Essa abordagem visa a compreender visões doutrinárias lançadas sobre o objeto de estudo (as constituições), pois cada uma dessas visões emana luz e enfoque distinto sobre as ideias subjacentes, a origem, a natureza, o papel e essência do fenômeno constitucionalizante.

Além da contemporânea noção básica de que a constituição é a norma jurídica máxima que organiza e estrutura do Estado e exercício do Poder e determina direitos, garantias e deveres fundamentais das pessoas submetidas ao soberano, a doutrina enumera uma multiplicidade de outras visões (ou concepções), sendo praticamente unânime a percepção de que não há na prática uma acepção definitiva e única de constituição.

As concepções (ou sentidos) de constituição mais estudados são os seguintes:

Política: é teorizada pelo jurista alemão Carl Schmitt, o qual desenvolveu profícuos estudos relacionados com o exercício do poder e manteve controverso relacionamento com o regime nazista. A concepção política é decisionista. Isso quer dizer que a constituição é fruto de uma decisão política fundamental que visa a formar uma unidade política. A constituição em si, portanto, seria esse complexo normativo que diz respeito às questões mais essenciais da vida jurídica, como direitos e garantias individuais e organização do poder. Fora desta essência, teríamos apelas meras “leis constitucionais”. A visão política assim se denomina por dialogar mais intensamente com o objeto da ciência política, que é a conformação do Estado e do poder (ambos íntimos tópicos do processo constituinte originário).

Complementa a doutrina:

Ele admitia que só seria possível uma noção de constituição quando se distinguisse consti­tuição de lei constitucional.
Para os adeptos desse pensamento, constituição é o conjunto de normas que dizem respeito a uma decisão política fundamental, ou seja, aos direitos individuais, à vida democrática, aos órgãos do Estado e à organização do poder.

Lei constitucional, por outro lado, é o que sobra, isto é, que não contém matéria correlata àquela decisão política fundamental. (BULOS, 2014, p. 104).

Sociológica: é a concepção atribuída ao polaco Ferdinand Lassalle. Para o mesmo, a constituição só se configura efetivamente como tal quando representa os fatores reais do poder (termo essencial de sua teoria). O termo, simplificadamente, diz respeito à representação (nas normas) das fontes de poder na sociedade, ou seja, na realidade, na vida concreta em sociedade. Relembre que a Sociologia é uma disciplina voltada ao estudo científico de fenômenos sociais, ou seja, de sociedades em seu estado concreto e real, daí a razão pela qual a visão sociológica da constituição voltar especial atenção à realidade do exercício do poder e dos agentes que o exercitam. Consequência desta visão é a ausência de natureza constitucional ao simples “texto constitucional” cujo teor não corresponde aos fatores reais do poder.

De acordo com a doutrina:

Para Lassale, o docu­mento escrito com o nome de Constituição, se não espelhar fielmente esse paralelogra­mo de forças opostas e eficazes, não será de serventia alguma, não passando de um pe­daço de papel. Bem se vê que essa concepção carece de toda perspectiva normativa, não convindo às especulações do Direito Constitucional. (MENDES, 2015, p. 55).

Jurídica (ou lógico-jurídica): trata-se de concepção atribuída ao austríaco Hans Kelsen (o “mestre de Viena”), para o qual a constituição seria a norma hipotética fundamental (não positivada, mas que fundamenta o ato legislativo central) de um sistema, com superioridade no ordenamento e pureza jurídica, sem fundamento social ou político. É uma visão lógico-jurídica, com enfoque nítido na hierarquia do ordenamento jurídico. Tal concepção é jurídica porque foca-se exatamente na lógica hierárquica das normas, sem especial preocupação filosófica, política ou sociológica, o que não quer dizer que Kelsen ignorava tais perspectivas, mas apenas que sua teorização científica as abstraía.

Segundo a doutrina:

Kelsen vê as Constituições apenas no sentido jurídico; Constituição é, então, considerada norma pura, puro dever-ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política ou filosófica. (PIMENTA, 2007, p. 64).

Mas Kelsen, ao analisar a estrutura hierárquica da ordem jurídica, também distinguiu os sentidos formal e material de uma constituição.
Sentenciou que a constituição em sentido formal é certo documento solene, traduzido num conjunto de normas jurídicas que só podem ser modificadas mediante a observância de prescri­ções especiais, que têm por objetivo dificultar o processo reformador.
Já a constituição em sentido material é constituída por preceitos que regulam a criação de normas jurídicas gerais. (BULOS, 2014, p. 103).

Complementação

Outras concepções contemporâneas são relevantes:

Constituições biomédicas, constituições biológicas ou, simplesmente, bioconstituições são aque­las que consagram normas assecuratórias da identidade genética do ser humano, visando reger o processo de criação, desenvolvimento e utilização de novas tecnologias científicas. Visam assegu­rar a dignidade humana, salvaguardando biodireitos e biobens. (BULOS, 2014, p. 106).

Constituição dirigente: no dizer de J. J. Gomes Canotilho, são as constituições com pretensão de direcionamento da atividade estatal, determinando uma direção sócio-política de atuação e desenvolvimento pautada nos valores insertos na carta.

Constituição como processo público: Defensor dessa concepção: Peter Haberle. Procura compreender o texto constitucional como documento de uma sociedade pluralista e aberta, como obra de vários partícipes, como uma ordem jurídica fundamental do Estado e da sociedade. (BULOS, 2014, p. 111).

Referências

BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustvao Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.
PIMENTA, Marcelo V. A. Teoria da constituição. Belo Horizonte: Del Rey, 2007.

Questões

VUNESP – TJ-MS – Juiz Substituto (2015) Considerando os diferentes conceitos de Constituição, abordados sob a ótica peculiar de diversos doutrinadores, analise as seguintes manifestações sobre o tema:
I. Constituição é a soma dos fatores reais de poder que regem uma determinada nação.
II. Constituição é a decisão política fundamental sem a qual não se organiza ou funda um Estado.
Assim, é correto afirmar que os conceitos I e II podem ser atribuídos, respectivamente, a:

a) Ferdinand Lassale e Hans Kelsen.

D

b) Hans Kelsen e Konrad Hesse.

D

c) Konrad Hesse e Carl Schimitt.

D

d) Ferdinand Lassale e Carl Schimitt.

Exato

e) J.J. Canotilho e Hans Kelsen.

D

 

INSTITUTO CIDADES – DPE-AM – Defensor Público (2011) A respeito do conceito e da classificação da Constituição, é correto afirmar que:

a) A Constituição, na clássica definição de Lassalle, é a decisão política fundamental de um povo, insculpida em um texto normativo que goza de superioridade jurídica frente às demais normas constitucionais.

C. Schmitt

b) Para Carl Schimit, a Constituição é a norma jurídica fundamental do ordenamento jurídico, servindo de fundamento de validade para as demais normas jurídicas.

H. Kelsen

c) No entendimento de Hans Kelsen, a Constituição é resultado das forças reais de poder, buscando o seu fundamento de validade em uma norma jurídica epistemológica

F. Lassalle

d) Para Carl Schmit, não há razão para se fazer distinção entre normas constitucionais em sentido formal e em sentido material, pois tudo o que está na Constituição tem o mesmo status constitucional.

Há divisão entre constituição e leis constitucionais.

e) No sentido ontológico (Karl Loewenstein), a Constituição pode ser classificada em semântica, nominal e normativa. A Constituição Federal de 1988 é um exemplo de Constituição normativa

A frase final é controversa, mas o restante é correto. Para Loewenstein, a classificação normativa implica constituição que efetivamente rege o processo político na sociedade. A classificação nominal seria das constituições que pretendem reger os processos políticos, mas que ainda não alcançou realmente tal pretensão.

 

CS-UFG – Prefeitura de Goiânia – Procurador do Município (2015) A teoria da Constituição, segundo a doutrina constitucionalista, é o conjunto de categorias dogmático-científicas que possibilitam o estudo dos aparelhos conceituais e dos métodos de conhecimento da lei fundamental do Estado. No que tange ao conceito de constituição, considerando a sua pluralidade de acepções, depreende-se que:

a) Constituição Sociológica – é que se irmanara com os fatores reais de poder, que regem a sociedade, e equivalem à força ativa de todas as leis da sociedade, entendimento esse atribuído primordialmente a Konrad Hesse.

F. Lassale. Konrad Hesse é o pai da teoria da força normativa da constituição.

b) Constituição como ordem material e aberta da comunidade – serviria para delinear os fundamentos e os princípios que norteiam o funcionamento do Estado, tendo como meta resolver conflitos da comunidade, disciplinando as relações sociais em constante evolução, sentido empregado por Ferdinand Lassalle.

Essa visão plural é de Peter Haberle

c) Constituição Plástica – é aquela que apresenta uma mobilidade, projetando a sua força normativa na realidade social, política, econômica e cultural do Estado, conforme a perspectiva defendida por Raul Machado Horta.

Correto. A noção de plasticidade diz respeito à maleabilidade da constituição para se adaptar às situações fáticas e circunstâncias concretas.

d) Constituição Política – é o conjunto de normas que dizem respeito a uma decisão política fundamental, ou seja, aos direitos individuais, à vida democrática, aos órgãos do Estado e à organização do poder, tendo como seu principal defensor Hans Kelsen.

C. Schmitt

Litisconsórcio no Processo Civil: hipóteses e classificações

O litisconsórcio é a litigância em conjunto de partes no mesmo processo, seja no polo passivo ou ativo. As hipóteses em que se verifica essa multiplicidade de partes estão previstas no art. 113, do CPC:

Art. 113. Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:
I – entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide;
II – entre as causas houver conexão pelo pedido ou pela causa de pedir;
III – ocorrer afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito.

Código de Processo civil de 2015

O inciso I (comunhão de direitos ou de obrigações) é típico do caso de condomínio (pois várias pessoas possuem o domínio, portanto, comungam do direito e das obrigações) ou de solidariedade passiva e ativa.

O inciso II (conexão pelo pedido ou causa de pedir) decorre de situações em que as partes tem comunhão de pedido (tal qual credores solidários em face de devedor) ou direito e obrigações decorrentes de um mesmo fato.

O inciso III (afinidade de questões) é amplo e possibilita a litigância conjunta por mera afinidade de fatos ou interesse jurídico, como na multiplicidade de contribuintes litigando sobre critérios de tributação.

Essa pluralidade de agentes no processo pode trazer inconvenientes para o seu regular processamento, sendo possível, portanto, a limitação pelo Juízo nos casos de litisconsórcio facultativo:

§ 1º O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes na fase de conhecimento, na liquidação de sentença ou na execução, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa ou o cumprimento da sentença.
§ 2º O requerimento de limitação interrompe o prazo para manifestação ou resposta, que recomeçará da intimação da decisão que o solucionar.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Trata-se do denominado litisconsórcio multitudinário (termo derivado de multidão).

É válido perceber que a decisão final que ignora o litisconsórcio necessário, impossibilitando o devido contraditório por legítimos interessados na relação jurídica, pode ser nula (litisconsórcio unitário) ou ineficaz (nos demais casos, para os que não forem citados):

Art. 115. A sentença de mérito, quando proferida sem a integração do contraditório, será:
I – nula, se a decisão deveria ser uniforme em relação a todos que deveriam ter integrado o processo;
II – ineficaz, nos outros casos, apenas para os que não foram citados.
Parágrafo único. Nos casos de litisconsórcio passivo necessário, o juiz determinará ao autor que requeira a citação de todos que devam ser litisconsortes, dentro do prazo que assinar, sob pena de extinção do processo.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Evita-se a nulidade quando não houver necessidade de litisconsórcio unitário (definição abaixo), mas impede-se a imposição da solução jurídica aos que não compuseram o feito.

Classificação

A classificação é objeto típico de estudo do litisconsórcio:

  • Ativo: é o que se dá no polo ativo da demanda (entre autores).
  • Passivo: é o que se dá no polo passivo da demanda (entre demandados).
  • Misto: é o que se verifica em ambos os polos da demanda.
  • Inicial: que se afigura desde o início do processo.
  • Incidental: que emerge no curso da demanda, como no resultado da denunciação da lide. A doutrina adverte que esta figura, em regra, não se aplica ao litisconsórcio facultativo.
  • Facultativo: dá-se por exclusão da definição do litisconsórcio necessário. É a regra geral, podendo as partes litigarem em conjunto ou separadas, conforme as hipóteses do art. 113, acima transcrito.
  • Necessário: é aquele cuja formação é obrigatória, para fins de conferir a devida amplitude subjetiva ao julgamento da demanda (ou seja, atingir todos os indivíduos pertinentes no que for cabível para cada). Não é necessário que a estipulação de direitos e obrigações seja igual para todos os litisconsortes (vide diferença entre litisconsórcio unitário e simples).

O litisconsórcio facultativo deve ser sempre formado no momento da propositura da ação, não se admitindo a sua formação posterior (litisconsórcio ulterior), em respeito ao princípio do juiz natural.

MONTENEGRO FILHO, 2016, n.p.

Art. 114. O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

O caso típico de litisconsórcio necessário é o formado entre cônjuges (salvo separação absoluta) nas ações imobiliárias (art. 73, §1º, I). Relembre-se, ainda, que mesmo que sejam muitos litisconsortes necessários, é indevido o seu fracionamento.

  • Comum (simples, não unitário): é aquele em que a solução jurídica definida pode ser diversa para cada litisconsorte.
  • Unitário: é aquele em que a decisão promove a mesma solução jurídica para os litisconsortes. Há uniformidade no pronunciamento.

Em regra, o litisconsórcio cria uma unidade procedimental, mas conserva a autonomia das ações cumuladas, de sorte que os pedidos reunidos pelos diversos autores, ou contra os diversos réus, mesmo sendo julgados por sentença formalmente una, podem ter desfechos diferentes.

THEODORO JUNIOR, 2016, n.p.

Art. 116. O litisconsórcio será unitário quando, pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir o mérito de modo uniforme para todos os litisconsortes.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

De forma geral, os litisconsortes são agentes autônomos, mas no caso do litisconsórcio unitário há uma conjunção de interesses mais íntima que permite que atos de um litisconsorte podem beneficiar os demais (já que a decisão final é uniforme para todos).

Art. 117. Os litisconsortes serão considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes distintos, exceto no litisconsórcio unitário, caso em que os atos e as omissões de um não prejudicarão os outros, mas os poderão beneficiar.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015

Complementações

Segundo antigo entendimento doutrinário, a que o NCPC se manteve fiel, o litisconsórcio necessário ocorre apenas no polo passivo do processo (art. 115, parágrafo único). Não há, pois, litisconsórcio necessário ativo, em regra.

Com efeito, em regra ninguém é obrigado a litigar no polo ativo, razão pela qual o fenômeno é típico da pluralidade subjetiva passiva.

A figura do litisconsórcio facultativo unitário, implicitamente incluída no art. 116 do NCPC, tem como função resolver a situação daqueles casos previstos no direito material em que a relação jurídica é incindível, mas a legitimação para discuti-la é atribuída por lei a mais de uma pessoa, que pode agir individualmente, provocando solução judicial extensível a todos os cointeressados. O fenômeno, segundo Barbosa Moreira, enquadra-se na substituição processual, cujo papel consiste justamente em resolver o problema dos colegitimados que deixam de participar do processo.

THEODORO JUNIOR, 2016, N.P.

Neste caso, a decisão jurídica é uniforme para todos os interessados (unitário), mas estes não precisam litigar em conjunto para alcançar a decisão (facultativo). É o caso em que a lei material defere legitimidade para todos litigarem isoladamente ou em conjunto, em nome do todo. Exemplo é o caso do condomínio:

Art. 1.314. Cada condômino pode usar da coisa conforme sua destinação, sobre ela exercer todos os direitos compatíveis com a indivisão, reivindicá-la de terceiro, defender a sua posse e alhear a respectiva parte ideal, ou gravá-la.

Código Civil

Com base nas possibilidades de cumulação de pedidos em face de mais de um sujeito processual, há autores que estudam o litisconsórcio alternativo, sucessivo e eventual.

  • Litisconsórcio sucessivo: se dá quando ocorre cumulação sucessiva de pedido (ou seja, um pedido que será apreciado somente se antecedente, do qual se depende, também for). Um cenário possível envolve o caso em que um dos litisconsortes faz um pedido que depende da procedência do pedido do outro. Também se vislumbra em face dos réus, quando a apreciação de um pedido em face de um depende da procedência do pedido em face do corréu.
  • Litisconsórcio eventual: corresponde à figura do pedido eventual (aquele que só é apreciado se o principal não tiver êxito). Em termos de litisconsórcio, seria o caso em que um dos pedidos contra um litisconsorte só será apreciado se a demanda em face de outro for improcedente.
  • Litisconsórcio alternativo: ocorre quando há cumulação alternativa de pedidos (ou seja, de início já se sabe que apenas um dos pleitos pode ser atendido), sendo caso em que o litiga o autor contra duas pessoas, mas sendo apenas uma o réu devido.

Um bom exemplo costuma acontecer na consignação em pagamento: na dúvida, pode o autor dirigir-se a duas pessoas, por não saber a qual das duas se acha juridicamente ligado (art. 547, CPC), requerendo o devedor o depósito e a citação dos que disputam o crédito. Ao julgar a controvérsia entre os dois réus, decidirá o juiz qual deles era o legitimado perante o autor. O litisconsórcio alternativo é facultativo simples.

DIDIER JR., 2016, p. 532-533.

Referências

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1. Salvador: Jus Podivm, 2016.
MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil: de acordo com o novo CPC. São Paulo: Atlas, 2016.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Código de Processo Civil anotado. Rio de Janeiro: Forense, 2016.

Questões

(FCC – TRT 14 – Juiz do Trabalho – 2014) No que pertine ao litisconsórcio:

a) É incorreto afirmar-se que o juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão;

 

É possível a limitação. Art. 113, §1º

b) Há litisconsórcio facultativo quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir, a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo;

 

Nestas condições é necessário.

c) Os litisconsortes são sempre considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes distintos;os atos e as omissões de um não prejudicarão nem beneficiarão os outros;

 

No caso do litisconsórcio unitário, há aproveitamento.

d) Não se conta em dobro o prazo de recurso quando apenas um dos litisconsodes sucumbiu;

 

Correto. Em regra, há prazo em dobro por força do art. 229, do CPC (salvo processo eletrônico). Mas se apenas um tem interesse recursal, o benefício não se aplica.

e) Nenhuma das anteriores.

 

Resposta: D

(IBFC – EBSERH – Advogado – 2016) Considere as disposições do código de processo civil e assinale a alternativa correta sobre a espécie de litisconsórcio que o juiz não poderá limitar o quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa.

a) Litisconsórcio passivo.

 

Podendo ser facultativo, pode ser limitado.

b) Litisconsórcio necessário.

 

De fato. Sendo necessário, o Juízo não pode limitar.

c) Litisconsórcio simples.

 

Podendo ser facultativo, pode ser limitado.

d) Litisconsórcio facultativo.

 

Podendo ser facultativo, pode ser limitado.

e) Litisconsórcio ulterior.

 

Podendo ser facultativo, pode ser limitado.

(FCC – Prefeitura de Campinas – Procurador – 2016) Quanto ao litisconsórcio, é correto afirmar:

a) O litisconsórcio será necessário por disposição de lei ou quando, pela natureza da relação jurídica controvertida, a eficácia da sentença depender da citação de todos que devam ser litisconsortes.

 

Texto do art. 114.

b) Os litisconsortes sempre serão considerados, em suas relações com a parte adversa, como litigantes únicos, motivo pelo qual os atos e omissões de um não prejudicarão nem poderão beneficiar os demais.

 

Errado. Vide art. 117

c) O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, somente na fase de conhecimento, quando esse número comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa.

 

Não há limitação de fase. Art. 114, §1º

d) Se um dos litisconsortes passivos contestar a ação, esse fato não obstará a ocorrência dos efeitos da revelia em relação a quem não a contestou.

 

Art. 345. A revelia não produz o efeito mencionado no art. 344 se: I – havendo pluralidade de réus, algum deles contestar a ação;

e) Cada litisconsorte tem o direito de promover o andamento do processo, mas somente quem pleiteou o andamento será intimado do ato respectivo.

 

Art. 118: “[…] e todos devem ser intimados dos respectivos atos.”

Prescrição penal

A prescrição é o fenômeno jurídico de índole material que desencadeia a fulminação da pretensão jurídica punitiva ou executória do Estado (o jus puniendi). Em outras palavras, finda a possibilidade de processamento e punição de um indivíduo pelo ente soberano, que detém exclusividade na aplicação da sanção criminal, tendo em vista o decurso de lapso temporal significativo para tornar indesejada, aos olhos do ordenamento jurídico, a punição.

Cesare Beccaria é um dos expoentes da visão de que o crime há de ser seguido de perto pelo seu castigo legal. O atraso demasiado da punição implica injustiça e verdadeira vingança. A prescrição, portanto, desabona a morosidade dos processos persecutórios e serve de garantia para o acusado, buscando aproximar o máximo possível delito e punição.

QUANDO o delito é constatado e as provas são certas, é justo conceder ao acusado o tempo e os meios de justificar-se, se lhe for possível; é preciso, porém, que esse tempo seja bastante curto para não retardar demais o castigo que deve seguir de perto o crime, se se quiser que o mesmo seja um freio útil contra os celerados. (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Domínio público, recurso digital).

No Código Penal brasileiro, a matéria é tratada como circunstância extintiva de punibilidade.

Art. 107 – Extingue-se a punibilidade: IV – pela prescrição, decadência ou perempção;

Utiliza-se, no ordenamento pátrio, o índice do art. 109, do CP, para estipular os lapsos prescricionais dos crimes, seja para a aferição com base na pena abstrata ou concretamente imposta. Atenção aos destaques é essencial:

Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:
I – em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;
II – em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não excede a doze;
III – em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não excede a oito;
IV – em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede a quatro;
V – em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo superior, não excede a dois;
VI – em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.

Restruturando com mais clareza:

Pena Prescrição
– de 1 ano 3 anos Novo patamar mínimo decorrente da Lei nº 12.234/10.
Não retroage para crimes anteriores.
+ ou = 1 ano
– ou = 2 anos
4 anos Único substrato onde há duas igualdades aritméticas.
Os demais tem apenas uma ou nenhuma igualdade.
+ de 2 anos e
– ou = 4 anos
8 anos Observe-se que os prazos prescricionais crescem de 4 em 4 anos a partir do substrato anterior.
+ de 4 anos e
– ou = 8 anos
12 anos
+ de 8 anos e
– ou = 12 anos
16 anos
+ de 12 anos 20 anos

Pretensões punitiva e executória

No mais, o ordenamento prevê dois gêneros de prescrição: a da pretensão punitiva e a da pretensão executória.

A prescrição da pretensão punitiva ocorre antes do trânsito em julgado da decisão final, extinguindo qualquer consequência do crime. A seu turno, a prescrição da pretensão executória se dá posteriormente ao trânsito em julgado, com a inércia estatal em aplicar de fato a sanção definida. Neste caso, consequências acessórias da punição permanecem, como a reincidência, sendo apenas a pena em si extinta.

 

Cômputo em concreto e em abstrato

Somado a esses dois critérios, ainda note-se que a prescrição pode ser computada de duas formas: pela pena cominada em abstrato ou em concreto.

O cômputo pela pena in abstracto leva em consideração a pena máxima que o indivíduo pode receber e usualmente é reconhecida antes da condenação (visto que, até então, não há pena concreta cominada para se definir outro critério). A lógica é simples, pois havendo lapso de tempo correspondente ao prazo de prescrição máximo para certo delito, inevitavelmente teremos prescrição, pois já estamos considerando a pior das hipóteses para o réu em termos de pena. Exemplo simples: o homicídio simples (art. 120, caput, do CP) tem pena máxima de 20 anos. Sendo duração maior que 12 anos, aplica-se a regra do art. 109, I, do CP, que indica a prescrição desse crime em 20 anos. Se, entre o dia da consumação (art.
111, I, do CP) e a apresentação da denúncia existir lapso temporal superior a 20 anos, a pretensão punitiva estará prescrita.

O cômputo pela pena in concreto difere:

Ao fim do processo, havendo condenação e imputação de determinada pena, esta passa a ser o critério para apuração do respectivo prazo prescricional, em correlação com a lista do art. 109, do CP.

Termo inicial e marcos interruptivos

A prescrição funciona pelo cômputo do decurso temporal. Para realizar esse procedimento cronológico, é necessário entender quais os momentos em que se inicia tal contagem e as circunstâncias que interrompem a mesma, reiniciando-a.

É o que se descobre nos arts. 111 e 117, do CP:

Art. 111 – A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr:
I – do dia em que o crime se consumou;
II – no caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa;
III – nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência;
IV – nos de bigamia e nos de falsificação ou alteração de assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou conhecido.
V – nos crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, previstos neste Código ou em legislação especial, da data em que a vítima completar 18 (dezoito) anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.

Art. 117 – O curso da prescrição interrompe-se:
I – pelo recebimento da denúncia ou da queixa;
II – pela pronúncia;
III – pela decisão confirmatória da pronúncia;
IV – pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis;
V – pelo início ou continuação do cumprimento da pena;
VI – pela reincidência.

Obs: note-se que a “publicação” da sentença ocorre com a entrega em mãos ao escrivão, que lavrará termo nos autos e registrará em livro próprio, conforme art. 389, do CPP. Também é interessante perceber que “acórdão condenatório” é o que condena após absolvição em primeiro grau ou o que altera substancialmente a condenação pré-existente. A simples confirmação pelo Tribunal não interrompe a prescrição.

Espécies de prescrição da pretensão punitiva

O já exposto nos traz algumas possibilidades:

Prescrição da pretensão punitiva em abstrato: Antes da cominação de pena e do trânsito em julgado. Utiliza-se a pena máxima cominável no tipo penal (considerando qualificadoras, que usualmente determinam diferentes penas, e majorantes e minorantes, que podem ir além ou aquém dos limites do preceito secundário (pena prevista). Pode incidir entre quaisquer das causas interruptivas do art. 117, do CP.

Como já mencionado, no caso da prescrição em abstrato, admite-se sempre a pior hipótese fática cabível, para fins de cômputo do prazo.

Tome-se o roubo majorado como exemplo. O roubo em si (art. 157, caput) tem pena máxima de dez anos (prescrição em 16 anos), mas se houver emprego de arma (art. 157, §2º, I), pode incidir majorante de um terço até metade. Para fins de prescrição, será necessário cogitar o incremento máximo sobre a pena máxima, o que revela uma pena de quinze anos, com prazo de prescrição em 20 anos.

Por outro lado, com base na pena cominada concretamente, com trânsito em julgado para a acusação (impedindo majoração da pena ulteriormente), temos outras hipóteses de prescrição da pretensão punitiva, abaixo descritas.

É possível também tais hipóteses de prescrição, conforme explica Masson, nas hipóteses em que há recurso acusatório, mas que este não é capaz de alterar o prazo prescritivo pertinente, como nos casos em que se pede majoração da pena de 1 para 2 anos. (MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. São Paulo: Método, 2017, p. 1066).

STF – Súmula 146: A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação.

Prescrição da pretensão punitiva retroativa: Após cominação de pena nos termos acima, surge nova oportunidade de cálculo da prescrição com base na pena imposta, com relação aos períodos passados do processo, anteriores à publicação da sentença. Os marcos iniciais são os existentes a partir do recebimento da denúncia. Tal hipótese é ratificada pelo art. 110, §1º, do CP:

§1º A prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa.

É importante observar que as alterações legislativas de 2010 reduziram o escopo da prescrição retroativa, pois não se admite termo inicial anterior à denúncia ou à queixa.

A Lei 12.234/2010, ao dar nova redação ao art. 110, §1º, do Código Penal, não aboliu a prescrição da pretensão punitiva, na modalidade retroativa, fundada na pena aplicada na sentença. Apenas vedou, quanto aos crimes praticados na sua vigência, seu reconhecimento entre a data do fato e a do recebimento da denúncia ou da queixa. (STF – HC 122694, Relator Ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgamento em 10.12.2014, DJe 19.2.2015)

Exemplo: Um indivíduo recepta um certo bem (art. 180), estando sujeito à pena de um a quatro anos. Entre a consumação e o recebimento da denúncia, há mora de quatro anos (não ocorre prescrição, pois nesta faixa só é possível a prescrição em abstrato, que depende de oito anos neste caso). Entre o recebimento da denúncia e a publicação da sentença condenatória, há lapso de cinco anos. Entretanto, a condenação é de apenas um ano de reclusão e não há recurso da acusação. Considerando que essa pena em concreto tem como prazo prescricional correspondente o período de 4 anos (art. 109, VI), percebe-se que o lapso temporal anterior (portanto, retroativo) é superior (5 anos), possibilitando o reconhecimento da prescrição retroativa.

Prescrição da pretensão punitiva superveniente ou intercorrente: com base no mesmo art. 110, §1º, do CP, temos prescrição com base na pena aplicada, mas com pensamento para o futuro do processo, notadamente a demora para julgamento dos recursos de defesa (lapso temporal entre a publicação da sentença e publicação do acórdão).

Exemplo: um indivíduo pratica estelionato (art. 171), sendo condenado a um ano de reclusão. Só a defesa recorre. Contando a partir da publicação da sentença (marco interruptivo e também termo inicial neste caso), a pretensão punitiva prescreverá em quatro anos (art. 109, V), se não for prolatado acórdão antes. Advindo publicação de acórdão neste prazo, a contagem se reinicia com o recurso da defesa, sendo necessária a decisão do STF/STJ no mesmo prazo, sob pena de advento da prescrição.

Prescrição da pretensão executória

Havendo trânsito em julgado da sentença condenatória para a acusação (havendo críticas sobre esta redação e posição de que o trânsito deve ser para ambas as partes) e verificando-se inércia executiva pelo prazo do art. 109, tendo como base a pena imputada definitivamente, ocorre prescrição da pretensão executória, mantidos os demais efeitos acessórios da condenação.

Art. 110 – A prescrição depois de transitar em julgado a sentença condenatória regula-se pela pena aplicada e verifica-se nos prazos fixados no artigo anterior, os quais se aumentam de um terço, se o condenado é reincidente.

Seu termo inicial é o trânsito em julgado da decisão para a acusação, nos termos da legislação.

Art. 112 – No caso do art. 110 deste Código, a prescrição começa a correr:
I – do dia em que transita em julgado a sentença condenatória, para a acusação, ou a que revoga a suspensão condicional da pena ou o livramento condicional;
II – do dia em que se interrompe a execução, salvo quando o tempo da interrupção deva computar-se na pena.

Sobre a interpretação do primeiro inciso, aduz a doutrina:

Essa regra se afigura contraditória, mas é extremamente favorável ao réu. De fato, a prescrição da pretensão executória depende do trânsito em julgado para ambas as partes, mas, a partir do momento em que isso ocorre, seu termo inicial retroage ao trânsito em julgado para a acusação. É o que se infere do art. 112, I, 1ª parte, do Código Penal. (MASSON, Cleber. Direito penal: parte geral. São Paulo: Método, 2017, p. 1074)

Complementação

A prescrição é matéria de ordem pública, podendo ser reconhecida a pedido ou de ofício pelo magistrado, em qualquer momento do processo, nunca precluindo.

Código de Processo Penal – Art. 61. Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.

Em regra, a pretensão punitiva é prescritível. No entanto, a Constituição Federal traz as únicas hipóteses de imprescritibilidade admitidas no ordenamento pátrio: o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.

Constituição Federal – Art. 5º […]
XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;
XLIV – constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

A prescrição, sendo matéria de índole material-penal, tem repercussão no princípio da retroatividade em caso de mudanças. Se a alteração beneficiar o réu, a lei nova é aplicada aos casos anteriores. Caso contrário, só valerá para casos posteriores à sua vigência.

A prescrição da pretensão punitiva em perspectiva (ou antecipada ou virtual) é uma construção doutrinária e jurisprudencial, sem previsão normativa, que visa o reconhecimento antecipado da prescrição com base na provável pena concreta que irá ser cominada, antes mesmo do advento da condenação (réu primário, boas circunstâncias judiciais, menor de 21 anos na data do fato, instrução demorada etc.). O julgador, com base nas circunstâncias do caso concreto, observa que o autor provavelmente será condenado em pena cujo prazo prescritivo se encaixa nos marcos interruptivos da prescrição. Para evitar a inócua e ineficaz atividade jurisdicional e prezar pela celeridade e economia, o Juízo poderia reconhecer de pronto a prescrição antecipada ou virtual (pois se baseia em cogitação), evitando o desperdício de esforço e recursos públicos.
A prática, entretanto, é desabonada pelo Superior Tribunal de Justiça, cuja entendimento sumulado expõe:

STJ – Súmula 438: É inadmissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal.

Prescrição da pena de multa: aplica-se o art. 114, do CP:

Art. 114 – A prescrição da pena de multa ocorrerá:
I – em 2 (dois) anos, quando a multa for a única cominada ou aplicada;
II – no mesmo prazo estabelecido para prescrição da pena privativa de liberdade, quando a multa for alternativa ou cumulativamente cominada ou cumulativamente aplicada.

Redução dos prazos prescricionais: ocorre em conformidade com o art. 115, do CP:

Art. 115 – São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos, ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos.

Suspensão da prescrição: ocorre conforme art. 116, do CP, em situações de prejudicialidade com outro processo (como no caso da resolução da bigamia em âmbito cível ou a verificação do estado civil do réu ou vítima). Existem outra hipóteses na legislação extravagante.

Art. 116 – Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre:
I – enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime;
II – enquanto o agente cumpre pena no estrangeiro.
Parágrafo único – Depois de passada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo.

Questões

(FCC – PGE/SE – 2005 – Procurador) A prescrição:

a) admite a interrupção, mas não a suspensão do respectivo prazo.

Falso. As causas impeditivas do art. 116 são situações de suspensão.

b) exclui o dia de início na contagem do prazo.

Falso. Como regra de direito material, conta-se o dia de início, conforme art. 10, do CP. A exclusão do dia inicial é procedimento de direito processual.

c) é calculada pelo total da pena no caso de concurso de crimes.

Falso. Art. 119 – No caso de concurso de crimes, a extinção da punibilidade incidirá sobre a pena de cada um, isoladamente.

d) é calculada pelo máximo da pena cominada no caso de prescrição da pretensão executória.

Usa-se a pena cominada concretamente. Apenas a prescrição da pretensão em abstrato usa a pena máxima.

e) não é interrompida pela sentença absolutória recorrível.

Correto. A previsão do art. 117 fala em sentença ou acórdão condenatórios.

 

(FCC – TJ/RR – 2008 – Juiz) A prescrição:

a) é calculada pelo total da pena no caso de concurso de crimes.

Art. 119. Mesmo comentário acima.

b) admite a interrupção, mas não a suspensão do respectivo prazo.

Mesmo comentário acima. Art. 116

c) é calculada pelo máximo da pena cominada no caso de prescrição da pretensão executória.

Mesmo comentário da questão anterior.

d) exclui o dia de início na contagem do prazo.

Mesmo comentário da questão anterior. Art. 10

e) retroativa constitui modalidade de prescrição da pretensão punitiva.

Correto.

 

(FCC – TCE/RO – 2010 – Procurador) A prescrição é interrompida:

a) pelo oferecimento da denúncia.

Pelo recebimento.

b) pela sentença absolutória imprópria.

Pela sentença condenatória. A falta de previsão, inclusive, importaria em analogia contrária ao réu, proibida no Direito Penal.

c) pela reincidência, se corresponder à prescrição da pretensão punitiva.

Trata-se de marco interruptivo da pretensão executória. O concurso de crimes antes da execução impõe prescrição isolada de cada um.

d) pela sentença concessiva de perdão judicial.

Pela sentença condenatória. A falta de previsão, inclusive, importaria em analogia contrária ao réu, proibida no Direito Penal.

e) pelo acórdão condenatório recorrível.

Correto. Art. 117.

 

(FCC – TJ/GO – 2015 – Juiz) A interrupção da prescrição:

a) não leva a que comece a correr novamente o prazo a partir do dia em que verificada a causa interruptiva, no caso de continuação do cumprimento da pena.

Correto. Art. 117, §2º. A regra é que a prescrição retorne a partir do dia da interrupção, salvo no início ou continuação do cumprimento da pena.

b) ocorre com o oferecimento da denúncia ou da queixa, e não com o recebimento.

Apenas recebimento.

c) é extensível aos crimes conexos, ainda que objeto de processos distintos, se verificada em relação a qualquer deles.

É necessário que haja processamento no mesmo feito. Art. 117, §1º.

d) produz efeitos relativamente a todos os autores do crime quando do início ou continuação do cumprimento da pena por algum deles.

A regra é que produza, salvo na reincidência ou início e continuação do cumprimento de pena, pois a condição é personalíssima do agente.

e) ocorre com a publicação da sentença ou acórdãos absolutórios recorríveis.

Sentença ou acórdão condenatórios.

Direitos humanos: noções prefaciais

No que se refere à ciência jurídica, os direitos humanos (“direitos do homem”, “direitos humanos fundamentais”) evidenciam típico objeto de estudo do Direito Internacional, apesar de manterem íntimas relações com os demais ramos do Direito.
A disciplina é usualmente denominada Direito Internacional dos Direitos Humanos. Este envolvimento enriquece o Direito em âmbito local, mas também propicia calorosos debates no que diz respeito à cultura, à identidade e à ideologia predominante em cada sociedade. Sobre a clara interdisciplinariedade da questão:

Por sua vez, o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao concentrar seu objeto nos direitos da pessoa humana, revela um conteúdo materialmente constitucional, já que os direitos humanos, ao longo da experiência constitucional, sempre foram considerados matéria constitucional. Contudo, no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos, a fonte de tais direitos é de natureza internacional. O enfoque da investigação é, assim, interdisciplinar, já que se localiza justamente na interação entre o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. (PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional). São Paulo: Saraiva, 2013, recurso digital).

Essa interdisciplinariedade é patente no introito da Constituição Federal de 1988, que assevera, em complementação ao seu inspirado leque de direitos fundamentais:

Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
II – prevalência dos direitos humanos;

Para uma abordagem jurídica prefacial e didática, pode-se entender um direito humano como uma prerrogativa jurídica essencial e intrínseca à condição humana, um direito que decorre meramente do fato de um indivíduo compartilhar da humanidade comum e de merecer dignidade. São direitos que, com evidência crescente a partir de meados do século XX, impõem uma peculiar visão ética sobre a vida em sociedade, local e globalmente.

Obs: mesmo que sejam, em regra, iguais materialmente (ou seja, em essência e fundamento), direitos fundamentais e direitos humanos encontram uma simples divisão técnica na doutrina majoritária: os primeiros dizem respeito à vida jurídica no âmbito interno do Estado constitucional, enquanto os segundos, no âmbito internacional. Ainda assim, na praxe internacional e interna, não há uma terminologia rigorosa, existindo tratados de direitos humanos que os mencionam como direitos fundamentais e direitos humanos vestidos de direitos fundamentais, com conseguinte direta aplicação interna. As diferenças, em regra, adentram a seara das formalidades e aplicabilidade, existindo autores que pregam a submissão integral da soberania dos países ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, visão que torna irrelevantes as principais diferenças formais entre as figuras.

Essa “união de termos” [direitos humanos fundamentais] mostra que a diferenciação entre “direitos humanos, representando os direitos reconhecidos pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, e os “direitos fundamentais”, representando os direitos positivados nas Constituições e leis internas, perde a importância, ainda mais na ocorrência de um processo de aproximação e mútua relação entre o Direito Internacional e o Direito interno na temática dos direitos humanos. (RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, recurso digital).

Atualmente é certa a autonomia científica deste ramo de estudo, que no decorrer dos anos vem adquirindo maior concretização e força normativa por meio do amadurecimento dos seus sistemas protetivos, instituições e corpo normativo. Entre os objetos de estudo dessa disciplina, estudam-se os fundamentos dos direitos humanos e suas características típicas, as previsões positivas dos mesmos (declarações, tratados, convenções), os mecanismos e procedimentos de proteção (sistemas regionais e internacional, formas de petição e meios coercitivos de respaldo).

Esta visão corresponde ao que se denomina de noção contemporânea dos direitos humanos, que merece especial destaque em face de sua internacionalização, alto grau de legitimação, adesão e suporte instrumental por instituições, Estados e organizações internacionais, bem como possibilidade de petição por diversos sujeitos e julgamento por órgãos legitimados. Para a doutrina, esta visão contemporânea é introduzida com o a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e com a Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. Observe-se que a noção de contemporaneidade tem forte apelo cronológico, não subestimando estudos milenares existentes sobre o homem, a justiça, os princípios, os valores e os seus direitos essenciais.

A Declaração Universal de 1948 demarca a concepção contemporânea dos direitos humanos, seja por fixar a ideia de que os direitos humanos são universais, inerentes à condição de pessoa e não relativos às peculiaridades sociais e culturais de determinada sociedade, seja por incluir em seu elenco não só direitos civis e políticos, mas também direitos sociais, econômicos e culturais. A partir da aprovação da Declaração Universal, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros tratados internacionais voltados à proteção de direitos fundamentais. (PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos). São Paulo: Saraiva, 2012, recurso digital).

É interesse observar que a história evolutiva dos direitos humanos evidencia outros olhares sobre os mesmos, com visões naturalistas e religiosas. É comum a menção à tragédia grega “Antígona”, de Sófocles, onde a personagem homônima recusa a aplicação da lei posta em prestígio das leis universais e atemporais dos deuses.

Características

A partir da Declaração de Viena de 1993 podemos extrair algumas características desses direitos:

5. Todos os Direitos do homem são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional tem de considerar globalmente os Direitos do homem, de forma justa e equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas político, económico e cultural, promover e proteger todos os Direitos do homem e liberdades fundamentais.

A universalidade é a característica de que tais direitos são titularizados por todos os seres humanos indistintamente.
A indivisibilidade é a característica de que esse complexo de direitos é interconectado, indivisível. A violação de um aspecto dos direitos humanos implica violação dos demais. Tais direitos não podem ser gozados de maneira fracionária. Isso se aplica para a totalidade de suas vertentes, incluindo liberdades civis e direitos sociais e econômicos.

A noção de indivisibilidade interage com a evolução e processo acumulativo de tais direitos. Os autores falam, portanto, em gerações de direitos humanos ou dimensões, termo preferido por parte da doutrina por melhor caracterizar a noção de interdependência e conectividade.

Isto é, afasta-se a ideia da sucessão “geracional” de direitos, na medida em que se acolhe a ideia da expansão, cumulação e fortalecimento dos direitos humanos consagrados, todos essencialmente complementares e em constante dinâmica de interação. (PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos). São Paulo: Saraiva, 2012, recurso digital).

Outra característica ressaltada é a historicidade e a proibição de retrocesso (ou effet cliquet, conforme doutrina francesa). Neste aspecto, entendem-se tais direitos como um fenômeno que evolui juntamente com a sociedade, angariando novas facetas em um processo acumulativo, e não deletério. Nesse contexto, veda-se a revogação ou superação de direitos consagrados, de forma a se manter íntegra a proteção de todo o complexo de direitos, proibindo-se o retrocesso do cenário protetivo.

Obs: nesse mesmo contexto, entrincheiramento (entrenchment) é a preservação dos direitos já conquistados, concretizando-os e protegendo-os de ulteriores retrocessos ou reduções.

Direitos humanos também são inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis e imprescritíveis. Isso quer dizer que as pessoas não podem se desfazer, renunciar ou perder a possibilidade de gozo ou exercício de tais direitos por inércia ou vontade própria, pois os mesmos são intrinsecamente ligados às mesmas, sendo juridicamente ínsitos à respectiva condição humana, permanecendo juridicamente indissociáveis.

Os direitos humanos são tão vinculados à proteção da dignidade inerente ao ser humano que são indisponíveis, inalienáveis e irrenunciáveis, não podendo, portanto, ser afastados ainda que assim queira seu destinatário. (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 803).

Acima estão características meramente exemplificativas. A doutrina é generosa na indicação de facetas (por vezes redundantes), sendo a Declaração Universal e a Declaração de Viena o costumeiro norte para definição da visão atual de direitos humanos.

Fundamentos e dignidade da pessoa humana

A título de fundamento, é comum a indicação da dignidade da pessoa humana como fundamento dos direitos humanos. A noção de dignidade, hoje em voga e com importância última reconhecida também na Constituição Federal de 1988, é especialmente delineada por Immanuel Kant, que na obra Fundamentação da metafísica dos costumes delineia que coisas com preço podem ser substituídas, enquanto as com dignidade, notadamente os indivíduos, não se submetem à substituição, sendo fins em si mesmos. A visão kantiana, portanto, defere aos indivíduos dignidade, tornando-os seres finalísticos em si próprios, não podendo ser objetificados ou utilizados como meros meios.

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III – a dignidade da pessoa humana;

Tanto nos diplomas internacionais quanto nacionais, a dignidade humana é inscrita como princípio geral ou fundamental, mas não como um direito autônomo. De fato, a dignidade humana é uma categoria jurídica que, por estar na origem de todos os direitos humanos, confere-lhes conteúdo ético. Ainda, a dignidade humana dá unidade axiológica a um sistema jurídico, fornecendo um substrato material para que os direitos possam florescer. (RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, recurso digital).

Outras teorias apontam uma ordem superior e universal (visão jusnaturalista, podendo admitir enfoques religiosos ou racionalistas), além da norma posta; a visão positivista, que entende que o fundamento é a norma posta, com previsão expressa dos direitos humanos. E a teoria moralista, de Perelman:

A teoria moralista (ou de Perelman) fundamenta os direitos humanos na “experiência e consciência moral de um determinado povo”, ou seja, na convicção social acerca da necessidade da proteção de determinado valor. (PORTELA, Paulo Henrique Gonçalves. Direito internacional público e privado. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 802).

A doutrina debate sobre a questão, sendo consequência prática deste debate a necessidade ou não de expressão positiva de tais direitos. Para os positivistas, é necessária a positivação. Para os jusnaturalistas, a positivação é mero acessório, sendo possível e devida a proteção independentemente de consagração formal. Esta desnecessidade de positivação encontra respaldo de maioria doutrinária, mas possui dificuldade de aplicação prática, tendo em vista que, em regra, os mecanismos coercitivos dos sistemas de proteção dependem de uma adesão formal por parte dos Estados soberanos.

Materialidade e formalidade

A partir desse debate, emerge a discussão acerca das facetas formal e material dos direitos humanos. O elemento formal diz respeito à consagração positiva explícita de um direito, enquanto o elemento material trata da essencialidade do direito, em conformidade com seu fundamento, independentemente de previsão explícita.

Os direitos humanos representam valores essenciais, que são explicitamente ou implicitamente retratados nas Constituições ou nos tratados internacionais. A fundamentalidade dos direitos humanos pode ser formal, por meio da inscrição desses direitos no rol de direitos protegidos nas Constituições e tratados, ou pode ser material, sendo considerado parte integrante dos direitos humanos aquele que – mesmo não expresso – é indispensável para a promoção da dignidade humana. (RAMOS, André de Carvalho. Curso de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2014, recurso digital).

Amicus curiae

O “amigo da corte”, ou amicus curiae, é sujeito processual que visa à ampliação do debate sobre determinado assunto e atingimento de uma decisão mais democrática ou plural. Outra preocupação jurisdicional que envolve o papel deste terceiro é a necessidade de o julgador compreender aspectos relevantes da lide que podem ser melhor expostos por tais terceiros, em face de sua excepcional representatividade e conhecimento.

Dessa forma, é possível a presença de mais de um destes terceiros, defendendo inclusive interesses contrapostos, de forma a auxiliar a Justiça a atingir uma decisão devidamente orientada e ciente de todas as circunstâncias relevantes.

É uma figura que muito dialoga, em âmbito constitucional, com a ideia de “sociedade aberta dos intérpretes” de Peter Häberle. Para este estudioso, a interpretação da Constituição não deve se resumir aos entendimentos das Cortes Supremas, devendo existir caminhos para que a sociedade como um todo dê sua contribuição para a interpretação e aplicação da Constituição que lhe guia jurídica e politicamente. Para Häberle, portanto, é necessária uma interpretação inclusiva plural das Constituições, não limitado a um fechado e restrito círculo de intérpretes.

Por força de lei, processos que envolvem objeto de atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) e Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já apresentavam a necessidade de intervenção destas autarquias, tendo em vista a especificidade de tais demandas e a potencial contribuição dessas entidades. De forma mais genérica, a Lei nº 9.868/99 já possuía previsão da contribuição do amicus curiae nos processos de controle concentrado de constitucionalidade:

Art. 7o Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.
§ 2o O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.

O instrumento foi ampliado na ótica do Código de Processo Civil de 2015 e é cabível em praticamente todos os procedimentos (como os Juizados Especiais) e fases processuais, mas deve ser observada a posição do STF e STJ no sentido de que tal ingresso deve ocorrer antes da inclusão em pauta de julgamento (analogamente, seria a conclusão em primeiro grau). É necessário aguardar o amadurecimento da aplicação do novo CPC a fim de averiguar se esta direção mantém-se forte:

Por esse potencial de pluralização do debate processual, a propósito, é que o Novo Código tornou possível a intervenção de amicus curiae toda vez que a sua participação posso contribuir para uma melhor solução para a causa e eventualmente para a formação de precedente a respeito da matéria (art. 138). (MARINONI, Luiz Guilherme. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, recurso digital).

Trata-se de intervenção voluntária de terceiros (podendo ser espontânea, por própria iniciativa do interessado, ou simplesmente voluntária, após convocação pelo juiz ou partes) com os seguintes parâmetros ditados pelo CPC:

Art. 138. O juiz ou o relator, considerando a relevância da matéria, a especificidade do tema objeto da demanda ou a repercussão social da controvérsia, poderá, por decisão irrecorrível, de ofício ou a requerimento das partes ou de quem pretenda manifestar-se, solicitar ou admitir a participação de pessoa natural ou jurídica, órgão ou entidade especializada, com representatividade adequada, no prazo de 15 (quinze) dias de sua intimação.
§ 1o A intervenção de que trata o caput não implica alteração de competência nem autoriza a interposição de recursos, ressalvadas a oposição de embargos de declaração e a hipótese do § 3o.
§ 2o Caberá ao juiz ou ao relator, na decisão que solicitar ou admitir a intervenção, definir os poderes do amicus curiae.
§ 3o O amicus curiae pode recorrer da decisão que julgar o incidente de resolução de demandas repetitivas.

O amicus curiae, portanto, pode ser pessoa física ou jurídica, contanto que tenha representatividade adequada. Ou seja, deve possuir alguma relação com o tema discutido, conhecimento suficiente para colaborar com uma decisão mais adequada.

Uma associação científica possui representatividade adequada para a discussão de temas relacionados à atividade científica que patrocina; um antropólogo renomado pode colaborar, por exemplo, com questões relacionadas aos povos indígenas; uma entidade de classe podeajudar na solução de questão que diga respeito à atividade profissional que ela representa etc. (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 530).

A admissão ou solicitação de intervenção do amicus curiae é irrecorrível. A decisão de inadmissão, a seu turno, encontra divergência doutrinária. Didier Jr. (2016) e Donizetti (2016) entendem ser recorrível, em face da literalidade do texto legal. Essa posição parece majoritária e também é ratificada pela importância do papel do amicus curiae na perspectiva instrumental e colaborativa do processo. Wambier e Talamini (2016) entendem ser decisão irrecorrível.

Também é notável que não há deslocamento de competência ocasionada pela inserção deste terceiro (§1º). Assim, mesmo que este tenha natureza federal, não emerge necessidade de deslocamento da lide para a Justiça Federal.

Como se observa, o amicus curiae ingressa no feito com poderes reduzidos, notadamente na seara recursal. Ainda assim, é permitida a oposição de embargos de declaração de forma geral e interposição de recurso nos casos de incidente de resolução de demandas repetitivas.

É interessante, ademais, observar a visão lançada por Donizetti sobre um valioso papel do amicus curiae na legitimação dos precedentes judiciais, diante da tendência de fortalecimento da jurisprudência no novo CPC. Com efeito, com esta nova perspectiva lançada sobre a força da jurisprudência e incremento das hipóteses de vinculação dos Juízos submetidos, é importante que a decisão proferida tenha legitimidade:

Por tais razões é que a intervenção do amicus curiae se tornou uma forma de legitimação dos procedentes judiciais, pois viabiliza uma interpretação pluralista e democrática, permitindo que a decisão proferida em determinado caso concreto seja adotada como regra geral para casos idênticos. (DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, recurso digital).

Incidente de desconsideração da personalidade jurídica

A personalidade jurídica é reconhecida no ordenamento e é, inclusive, capaz de titularizar direitos e deveres fundamentais. Entretanto, sua proteção e incolumidade, assim como a proteção à própria personalidade física (nos casos mais extremos previstos na Constituição, evidentemente), não são absolutas.
A desconsideração da personalidade jurídica (“levantamento do véu”, “lifting the corporate veil” ou “piercing the corporate veil”) é tema recorrente da ciência jurídica, admitindo diversas abordagens doutrinárias e possuindo rica história e evolução teórica. De maneira geral, entretanto, alia-se ao interesse precípuo de se evitar o uso da pessoa jurídica como blindagem para ilícitos, notadamente situações de fraude a credores ou confusão patrimonial (descumprimento da função social), sempre ocorrendo excepcionalmente.

Ressalte-se que a desconsideração não objetiva invalidar os atos constitutivos de uma sociedade, muito menos dissolvê-la. O que se pretende é tornar ineficazes os atos realizados pela sociedade (e imputáveis aos sócios), quando eles forem praticados em descumprimento à função social da empresa. (DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, recurso digital).

Aplica-se a teoria da desconsideração, apenas, se a personalidade jurídica autônoma da sociedade empresária colocar-se como obstáculo à justa composição dos interesses; se a autonomia patrimonial da sociedade não impedir a imputação de responsabilidade ao sócio ou administrador, não existe desconsideração. Uma regra geral que atribua responsabilidade ao sócio, em certos ou em todos os casos, não é regra de desconsideração da personalidade jurídica. (DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1. Salvador: Jus Podivm, 2016, p. 525).

É interessante perceber que o instituto em si tem espaço na lei material (na qual se regula as hipóteses de cabimento): art. 50, do Código Civil; art. 28, do Código de Defesa do Consumidor, enquanto sua aplicabilidade instrumental tem guarida na legislação processual.

Código Civil: Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
Código de Defesa do Consumidor: Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

É pertinente frisar, ademais, duas teorias vigentes sobre a aplicação do instituto.

Teoria maior da desconsideração: explicitada no Código Civil, requer o advento do inadimplemento (elemento objetivo) e o desvio de finalidade (elemento subjetivo).
Teoria menor da desconsideração: adotada notadamente nas áreas ambiental e consumerista, requer apenas o advento do inadimplemento (elemento objetivo), sem qualquer discussão sobre dolo, culpa ou uso indevido da personalidade jurídica.

Nos arts. 133 a 137, do CPC, o tema é processualmente sistematizado topograficamente dentro do título de intervenção de terceiros, pois inevitavelmente impõe a submissão de um terceiro ao Juízo.

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
§ 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.

Obs: a desconsideração inversa da personalidade ocorre quando se verifica um fenômeno inverso ao comum. No lugar de a pessoa jurídica esconder seus bens no patrimônio dos sócios, os sócios escondem seus bens no patrimônio daquela, a fim de furtarem-se de obrigações próprias. Nesse sentido há precedentes valiosos do STJ:

Informativo nº 0533 – Período: 12 de fevereiro de 2014.
TERCEIRA TURMA DIREITO CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA PARA REQUERER DESCONSIDERAÇÃO. INVERSA DE PERSONALIDADE JURÍDICA.
Se o sócio controlador de sociedade empresária transferir parte de seus bens à pessoa jurídica controlada com o intuito de fraudar partilha em dissolução de união estável, a companheira prejudicada, ainda que integre a sociedade empresária na condição de sócia minoritária, terá legitimidade para requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica de modo a resguardar sua meação. Inicialmente, ressalte-se que a Terceira Turma do STJ já decidiu pela possibilidade de desconsideração inversa da personalidade jurídica – que se caracteriza pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio -, em razão de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/2002 (REsp 948.117-MS, DJe 3/8/2010). Quanto à legitimidade para atuar como parte no processo, por possuir, em regra, vinculação com o direito material, é conferida, na maioria das vezes, somente aos titulares da relação de direito material. Dessa forma, a legitimidade para requerer a desconsideração é atribuída, em regra, ao familiar que tenha sido lesado, titular do direito material perseguido, consoante a regra segundo a qual “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei” (art. 6º do CPC). Nota-se, nesse contexto, que a legitimidade para requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica da sociedade não decorre da condição de sócia, mas sim da condição de companheira do sócio controlador acusado de cometer abuso de direito com o intuito de fraudar a partilha. Além do mais, embora a companheira que se considera lesada também seja sócia, seria muito difícil a ela, quando não impossível, investigar os bens da empresa e garantir que eles não seriam indevidamente dissipados antes da conclusão da partilha, haja vista a condição de sócia minoritária. REsp 1.236.916-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2013.

De volta ao procedimento apresentado no CPC:

Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.
§ 1o A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas.
§ 2o Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, hipótese em que será citado o sócio ou a pessoa jurídica.
§ 3o A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese do § 2o.
§ 4o O requerimento deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para desconsideração da personalidade jurídica.
Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.
Art. 136. Concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória.
Parágrafo único. Se a decisão for proferida pelo relator, cabe agravo interno.
Art. 137. Acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.

O que a nova legislação pretende é evitar a constrição judicial dos bens do sócio (ou da pessoa jurídica, na hipótese de desconsideração inversa) sem qualquer possibilidade de defesa. (DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, recurso digital).

Art. 1.062. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais.

O incidente é cabível em todas as fases do processo, havendo oportunidade de defesa e instrução pelo interessado. Sobre esta manifestação, o STJ tem precedente afirmando que a própria pessoa jurídica afetada pode defender sua integridade, contrapondo-se à desconsideração, desde que seu intuito seja a preservação de sua autonomia.

STJ – Informativo nº 0544 – Período: 27 de agosto de 2014.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL. LEGITIMIDADE DE PESSOA JURÍDICA PARA IMPUGNAR DECISÃO QUE DESCONSIDERE A SUA PERSONALIDADE.
A pessoa jurídica tem legitimidade para impugnar decisão interlocutória que desconsidera sua personalidade para alcançar o patrimônio de seus sócios ou administradores, desde que o faça com o intuito de defender a sua regular administração e autonomia – isto é, a proteção da sua personalidade -, sem se imiscuir indevidamente na esfera de direitos dos sócios ou administradores incluídos no polo passivo por força da desconsideração. Segundo o art. 50 do CC, verificado “abuso da personalidade jurídica”, poderá o juiz decidir que os efeitos de certas e determinadas relações obrigacionais sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. O referido abuso, segundo a lei, caracteriza-se pelo desvio de finalidade da pessoa jurídica ou pela confusão patrimonial entre os bens dos sócios/administradores com os da pessoa moral. A desconsideração da personalidade jurídica, em essência, está adstrita à concepção de moralidade, probidade, boa-fé a que submetem os sócios e administradores na gestão e administração da pessoa jurídica. Vale também destacar que, ainda que a concepção de abuso nem sempre esteja relacionada a fraude, a sua figura está, segundo a doutrina, eminentemente ligada a prejuízo, desconforto, intranquilidade ou dissabor que tenha sido acarretado a terceiro, em decorrência de um uso desmesurado de um determinado direito. A rigor, portanto, a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica resguarda interesses de credores e também da própria sociedade indevidamente manipulada. Por isso, inclusive, segundo o enunciado 285 da IV Jornada de Direito Civil, “a teoria da desconsideração, prevista no art. 50 do Código Civil, pode ser invocada pela pessoa jurídica em seu favor”. Nesse compasso, tanto o interesse na desconsideração ou na manutenção do véu protetor, podem partir da própria pessoa jurídica, desde que, à luz dos requisitos autorizadores da medida excepcional, esta seja capaz de demonstrar a pertinência de seu intuito, o qual deve sempre estar relacionado à afirmação de sua autonomia, vale dizer, à proteção de sua personalidade. REsp 1.421.464-SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 24/4/2014.

Chamamento ao processo

Nas hipóteses de solidariedade passiva (ex. co-devedores solidários, fiador e afiançado), é possível que o réu chame ao processo seus pares. Como espécie de litisconsórcio passivo facultativo, relembra-se que o autor da ação poderia intentá-la contra um devedor ou todos, mas não se impedindo que o réu chame os demais eventualmente. Assim como na denunciação, existe aqui uma medida de economia processual, pois se define a responsabilidade dos devedores solidários (todos abrangidos pelo título executivo formado) e, havendo o pagamento por um deles, já se reconhece de pronto sua sub-rogação na condição de credor em relação aos demais.

Vale observar que, de acordo com o CC/2002, o credor de dívida solidário poderá exigi-la, integralmente, de qualquer um dos devedores (art. 275). Apesar de parecer contraditório, o chamamento está em consonância com o regramento de direito material e tem a finalidade de abreviar o acertamento do direito de cada um dos coobrigados, evitando, assim, o ajuizamento de outras demandas. (DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, recurso digital).

O Código de Processo Civil de 2015 regula a matéria:

Art. 130. É admissível o chamamento ao processo, requerido pelo réu:
I – do afiançado, na ação em que o fiador for réu;
II – dos demais fiadores, na ação proposta contra um ou alguns deles;
III – dos demais devedores solidários, quando o credor exigir de um ou de alguns o pagamento da dívida comum.
Art. 131. A citação daqueles que devam figurar em litisconsórcio passivo será requerida pelo réu na contestação e deve ser promovida no prazo de 30 (trinta) dias, sob pena de ficar sem efeito o chamamento.
Parágrafo único. Se o chamado residir em outra comarca, seção ou subseção judiciárias, ou em lugar incerto, o prazo será de 2 (dois) meses.
Art. 132. A sentença de procedência valerá como título executivo em favor do réu que satisfizer a dívida, a fim de que possa exigi-la, por inteiro, do devedor principal, ou, de cada um dos codevedores, a sua quota, na proporção que lhes tocar.

O incidente, que é facultativo (também argumenta-se ser um ônus do réu, pois sua omissão impõe preclusão sobre a possibilidade), como se lê, há de ocorrer no devido momento postulatório, oportunizando aos convocados integral defesa no curso do conhecimento (não se aplica aos demais momentos processuais), visto que a decisão abrangerá suas responsabilidades.

Além disso, a sentença condenatória servirá também de título executivo para o devedor solidário que satisfizer a dívida ressarcir-se (na íntegra, no caso do fiador; das respectivas cotas-partes, no caso do devedor solidário) junto aos demais que tiverem sido também condenados, ou para o fiador ressarcir-se junto ao devedor principal (art. 132). (WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo. São Paulo: Revista os Tribunais, 2016, recurso digital).

As decisões relativas à admissão ou inadmissão do incidente, ademais, são interlocutórias e recorríveis por meio de agravo de instrumento (art. 1.015, IX, do CPC).

Chamamento ao processo e alimentos

Controvérsia suscitada na doutrina e jurisprudência diz respeito ao chamamento ao processo nas ações alimentares.
Partindo da proposição legal do art. 1.698, do Código Civil, percebe-se que não há solidariedade na obrigação de prestar alimentos, mas sim uma sucessão de obrigados limitada pela proporção de seus respectivos recursos. Não se pode exigir a integralidade de apenas um, caso este não tenha capacidade financeira para suportar o ônus.

Nesse contexto, é de se entender que o art. 1.698 do CC criou nova hipótese de chamamento ao processo, a par daquelas já contempladas na lei processual e no art. 788 do CC.
Apesar de a obrigação alimentar não ter caráter de solidariedade, tanto o autor poderá requerer a intervenção, como o réu terá direito de chamar ao processo os corresponsáveis pela obrigação alimentar, caso não consiga suportar sozinho o encargo. O chamamento deve ocorrer apenas quando frustrada a obrigação principal, de responsabilidade dos pais, ou quando a prestação se mostrar insuficiente ao caso concreto. (DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. São Paulo: Atlas, 2016, recurso digital).

Sobre a questão, é pertinente o entendimento do STJ referente à obrigação alimentar avoenga (avô e avó):

RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR AVOENGA. RESPONSABILIDADE COMPLEMENTAR E SUBSIDIÁRIA DOS AVÓS. PRESSUPOSTOS.
1. A obrigação alimentar dos avós apresenta natureza complementar e subsidiária, somente se configurando quando pai e mãe não dispuserem de meios para promover as necessidades básicas dos filhos.
2. Necessidade de demonstração da impossibilidade de os dois genitores proverem os alimentos de seus filhos.
3. Caso dos autos em que não restou demonstrada a incapacidade de a genitora arcar com a subsistência dos filhos.
4. Inteligência do art. 1.696 do Código Civil.
5. Doutrina e jurisprudência do STJ acerca do tema.
6. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
(STJ – REsp 1415753/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/11/2015, DJe 27/11/2015)

Obs: no que se refere ao idoso, a obrigação alimentar é solidária por força do art. 12, do Estatuto do Idoso.

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