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Ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF)

A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é um dos instrumentos integrantes do sistema de controle concentrado de constitucionalidade estabelecido pela Constituição Federal de 1988, funcionando na praxe judiciária como um complemento às demais ferramentas de controle abstrato, pois alcança violações que estão além do escopo de atuação das demais ações deste sistema. A previsão provém do texto original da Constituição:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

Nota: ressalte-se que a norma em questão possuía, na origem, eficácia limitada, pois não seria possível sua aplicação sem o devido complemento normativo. Esse complemento foi fornecido pela Lei nº 9.882/99, e a primeira ADPF proposta foi autuada em janeiro de 2000. Esta, entretanto, teve seu seguimento negado por impossibilidade jurídica do pedido.

Duas situações possibilitam a propositura da ADPF: a) evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público; e b) quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.

Como se percebe, a ADPF busca complementar o controle abstrato, passando a abranger, como principais exemplos, o controle de normas municipais, atos normativos infralegais e de normas anteriores à Constituição de 1988 (inatacáveis por ADI).

Esta ação coloca-se ao lado das demais do controle concentrado, tendo o objetivo de suprir as necessidades de controle abstrato de constitucionalidade. Assim, por exemplo, possui relevante função diante do direito pré-constitucional e do direito municipal, uma vez que, no primeiro caso, a ação direta de inconstitucionalidade não é admitida pelo STF em vista da ideia de ser contraditório declarar inconstitucional norma que não foi recepcionado por incompatibilidade com o novo texto constitucional, e, no segundo, a inconstitucionalidade tem como parâmetro de controle somente a Constituição Estadual (art. 125, §2º, da CF). (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2015, tópico nº 8.71).

 

Legitimidade ativa e objeto

A legitimidade ativa é a mesma da ADI (art. 2º, da Lei nº 9.882/99, e art. 103, da CF/88:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Nota: relembre-se que o Presidente, as Mesas do Senado e Câmara, o PGR, o CFOAB e os partidos com representantes eleitos têm legitimidade ampla, não lhes sendo exigida a pertinência temática com suas finalidades ou coerência com sua esfera delimitada. Por exemplo, o governador de um Estado não pode propor ADPF em face de legislação de um outro Estado ou sobre tema que não tenha repercussão em sua esfera jurídico-política de atuação. Igualmente, uma Confederação Sindical de uma categoria não pode propor ADPF contra atos e normas que não tenham pertinência com sua atividade profissional ou econômica ou suas finalidades institucionais.

Um exemplo concreto:

[…]
1. A jurisprudência do STF exige, para a caracterização da legitimidade ativa das entidades de classe e das confederações sindicais para as ações de controle concentrado, a existência de correlação entre o objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade e os objetivos institucionais da associação. (STF – ADPF 385-AgR/SE – DJe-244 DIVULG 24-10-2017 PUBLIC 25-10-2017).

O objeto da ADPF (ou seja, a coisa que se impugna) pode ser o ato do poder público ou lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição envoltos em controvérsia constitucional.

 

Petição inicial e subsidiariedade

A petição inicial da ADPF, além dos elementos básicos, deve conter (art. 3º, da Lei nº 9.882/99):

I – a indicação do preceito fundamental que se considera violado;
II – a indicação do ato questionado;
III – a prova da violação do preceito fundamental;
IV – o pedido, com suas especificações;
V – se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.
Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação.

A falta destes requisitos implica inépcia do petitório, justificando seu indeferimento liminar pelo relator no STF (art. 4º, da Lei nº 9.882/99). Esta decisão é agravável para o Plenário em cinco dias.

Este mesmo dispositivo revela o caráter subsidiário da ADPF em relação aos demais mecanismos de controle abstrato. De fato, existindo outro meio eficaz de neutralizar a lesividade da controvérsia, o mesmo há de ser utilizado em detrimento da ADPF (art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 9.882/99:

§ 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

Naturalmente, é como tem julgado o STF:

[…]
1. O cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais, ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito. Precedentes desta CORTE. […] (STF – ADPF AgR 224/DF – DJe 8/11/2017).

 

A noção de preceito fundamental

Como se percebe, a ADPF pode ser usada, quando inexistir outro meio hábil, para sanar violação a preceito fundamental. Trata-se de conceito jurídico indeterminado (lembre-se que estes são normas cujo teor não é preciso, mas que tem repercussões jurídicas precisas) cuja definição é disputada na praxe judiciária e na doutrina, mas que usualmente refere-se a certas previsões relevantes da Constituição, como os princípios fundamentais da República, os direitos e garantias fundamentais, os princípios sensíveis etc. São exemplos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[…]

Art. 60, § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

Tais preceitos fundamentais são parâmetros de controle no processo abstrato de constitucionalidade, servindo como o espelho de comparação para verificação a constitucionalidade e compatibilidade com a Constituição de 1988.

 

Decisão na ADPF

De início, a decisão na ADPF, tomada com a presença de ao menos 2/3 dos ministros, é irrecorrível e não sujeita à ação rescisória (art. 12, da Lei nº 9.882/99), apesar de poder sofrer modulação de seus efeitos (art. 11). Os efeitos, ademais, são vinculantes e oponíveis a todos (erga omnes), o que possibilita o manejo de reclamação em caso de descumprimento (art. 13).

Se o objeto da ADPF for norma anterior à Constituição, o resultado do julgamento é a declaração de não recepção.

Nota: de fato, o exame de em si constitucionalidade é sempre contemporâneo, de forma que uma lei anterior à CF/88 não pode ser declarada inconstitucional em relação a esta, mas pode ser declarada não recepcionada por não se adequar materialmente à nova realidade constitucional.

Nos demais casos, a decisão determina a nulidade ou inconstitucionalidade do ato, de sua aplicação ou até mesmo de alguma interpretação (art. 10, da Lei nº 9.882/99):

Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.
§ 1º O presidente do Tribunal determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente.

 

Medida liminar

À semelhança dos demais mecanismos de controle abstrato, há previsão da possibilidade de concessão de medida liminar, que pode consistir em suspensão de processos, dos efeitos de decisão ou qualquer outra medida compatível com a finalidade e natureza da ação.

Lei nº 9.882/99: Art. 5º O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental.
§ 1º Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.
§ 2º O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.
§ 3º A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.

 

Exemplos de ADPF

Na ADPF nº 273/MT, discutiu-se norma municipal que permitia o comércio de artigos de conveniência em farmácias. A ADPF buscava a inconstitucionalidade da norma, mas o STF entendeu que houve regular uso da competência legislativa suplementar do Município.

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (CF, ART. 102, § 1º) – LEI Nº 2.774/2005 DO MUNICÍPIO DE VÁRZEA GRANDE/MT – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A VENDA DE ARTIGOS DE CONVENIÊNCIA EM FARMÁCIAS, EM DROGARIAS E EM ESTABELECIMENTOS CONGÊNERES – ALEGADA USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO FEDERAL PARA EDITAR NORMAS GERAIS SOBRE PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE (CF, ART. 24, INCISO XXII, §§ 1º E 2º) – INOCORRÊNCIA – NORMA ESTATAL CUJO CONTEÚDO MATERIAL, NA REALIDADE, ESTABELECE REGRAS SOBRE COMÉRCIO LOCAL – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS (CF, ART. 30, INCISO II) – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA PELA IMPROCEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO – ADPF JULGADA IMPROCEDENTE. (STF – DJe-138 DIVULG 22-06-2017 PUBLIC 23-06-2017).

Na ADPF 291/DF, o STF entendeu não recepcionadas pela Constituição Federal a expressão “pederastia ou outro”, mencionada na rubrica enunciativa referente ao art. 235 do Código Penal Militar, e a expressão “homossexual ou não”, contida no referido dispositivo, mas manteve a recepção do tipo penal militar relativo a atos libidinosos praticados em ambientes sujeitos à administração militar.

2. Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados. (STF – DJe-094 DIVULG 10-05-2016 PUBLIC 11-05-2016).

Na ADPF 156/DF, o STF entendeu não recepcionada a exigência prevista na CLT relativa à obrigação do depósito de multa para admissibilidade de recurso administrativo.

1. Incompatibilidade da exigência de depósito prévio do valor correspondente à multa como condição de admissibilidade de recurso administrativo interposto junto à autoridade trabalhista ( § 1o do art. 636, da Consolidação das Leis do Trabalho) com a Constituição de 1988. (STF – DJe-208 DIVULG 27-10-2011 PUBLIC 28-10-2011).

Na ADPF 54/DF o STF se debruçou sobre o Código Penal de 1940 e entendeu que seria inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do CP. (STF – DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013).

 

Referências

SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

Questões

(CESPE – TRF5 – Juiz Federal Substituto – 2015) No tocante às ações de controle concentrado, assinale a opção correta com base no entendimento do STF:

a) Cabe ao STF processar e julgar a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.
b) A despeito do caráter dúplice da ADI, o indeferimento de medida cautelar não dá margem à propositura de reclamação, visto que essa decisão não possui efeito vinculante.
c) A ADPF pode ser utilizada para o fim de rever ou cancelar súmula vinculante.
d) Dado o caráter subsidiário e complementar da ADPF, o município tem legitimidade para propô-la.
e) Não é cabível medida cautelar em ADI por omissão.

 

(FCC – TRT/MT – Analista Judiciário – Área Administrativa) A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental − ADPF, segundo o Supremo Tribunal Federal:

a) é um tipo de ação, ajuizada exclusivamente no STF, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
b) não pode ter natureza equivalente às ações declaratórias de inconstitucionalidade.
c) pode questionar a constitucionalidade de uma norma perante a Constituição Federal, mas tal norma deve ser federal e posterior à Constituição vigente.
d) possui os mesmos legitimados para ajuizá-la que os da ação declaratória de inconstitucionalidade, salvo o Presidente da República.
e) é cabível, por ser autônoma, mesmo quando existir outro tipo de ação que possa ser proposta.

 

(TRT/RN – Juiz do Trabalho Substituto – 2015) Com base no regramento relativo ao processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), é correto afirmar:

a) O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na ADPF, podendo essa consistir determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da matéria, independente da coisa julgada.
b) Caberá ADPF, exclusivamente, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal ou estadual, incluídos os anteriores à Constituição.
c) Podem propor ADPF os legitimados para a Ação Declaratória de Constitucionalidade.
d) A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido formulado na ADPF será passível de Ação Rescisória, após o seu trânsito em julgado.
e) As entidades de classe de âmbito nacional detêm aptidão processual plena para propor ADPF, a exemplo do que dispõe a Constituição Federal.

 

(CESPE – TJ/DFT – Analista Judiciário – Judiciária – 2015) O STF pode admitir como ADPF ADI à qual tenha negado conhecimento, desde que presentes todos os requisitos para a sua admissibilidade.

Certo
Errado

Inconstitucionalidade por omissão e Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

Em se tratando de inconstitucionalidade, ou seja, incompatibilidade contemporânea com a Constituição, é comum que o estudioso do Direito tenha em mente situações tipicamente comissivas (positivas), como a edição de uma lei ou ato normativo incompatível com a Constituição. A teoria constitucional contemporânea, entretanto, também estuda condutas omissivas (negativas, “non facere”) inconstitucionais, nas quais a inércia de um agente ou instituição é postura contrária à carta constitucional. Isso é possível porque diplomas normativos como a Constituição brasileira de 1988 se revestem de índole dirigente, razão pela qual comumente assumem compromissos e determinam a prática de condutas e edição de normas que visem à concretização dos objetivos fundamentais republicanos ou outros preceitos e valores dependentes de atuação infraconstitucional.

A manutenção de uma deliberada inércia para com compromissos constitucionais é situação prejudicial à ordem jurídica como um todo, podendo contribuir para a chamada síndrome de inefetividade da constituição:

Ora, o silêncio transgressor, a insinceridade normativa, a inércia legislativa, o programaticismo das cartas novecentistas, ou quaisquer outros nomes correlatos à omissão inconstitucional, devem ser repudiados, porquanto produzem a síndrome de inefetividade das constituições, responsável pela erosão da consciência constitucional. (BULOS, 2015, p. 151).

Essa inércia, entretanto, para se revestir do vício da inconstitucionalidade, há de ignorar diretamente um explícito mandamento constitucional. Nesta toada, a doutrina informa que omissões decorrentes da leitura sistemática ou de posições implícitas da Constituição não seriam omissões inconstitucionais:

Somente o descumprimento de um preceito ou princípio constitucional individualizado, concreto e explícito é capaz de ensejar a categoria. Por isso, a omissão inconstitucional não é obtida em face do sistema em bloco. […] Apenas se afigura na seara dos mandamentos específicos, expressos e cristalinos, cuja inexequibilidade, em concreto, frustra o cumprimento da constituição. (BULOS, 2015, p. 152-153).

Ainda, a inexistência de norma ou ato de edição obrigatória deve ser proposital, deliberada. Nestes termos, não se poderia reconhecer inconstitucionalidade na simples demora dos atores legislativos. Exemplo disso são temas que encontram infindáveis debates  e deliberações no Poder Legislativo, mas sem a concretização em lei.

No Brasil, as normas constitucionais de eficácia limitada (que pela classificação de José Afonso da Silva, são as que dependem da edição de norma infraconstitucional para surtirem seus efeitos positivos) são as típicas vítimas da inconstitucional inércia legislativa. Estas normas, quando carente da sua complementação infraconstitucionais, criam lacunas técnicas, insuperáveis pelos métodos comuns de integração do Direito, como a analogia e aplicação dos princípios gerais. Exemplos são comuns na CF/88, como as “condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos” (art. 199, §4º) ou a partilha federativa de recursos fiscais prevista no art. 91, do ADCT (ADO nº 25).

Detectada a omissão inconstitucional, é possível o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) diretamente no Supremo Tribunal Federal, nos moldes da Lei nº 9.868/99.

 

Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão é uma demanda objetiva integrante do sistema de controle concentrado de constitucionalidade (sem controvérsia ou litígio individualizado) instaurada perante o STF. Tal ação não serve para alcançar a solução de conflitos individuais ou de casos concretos. Seu objeto é a omissão inconstitucional abstratamente observada e sua previsão é inaugurada na Constituição de 1988:

CF/88: Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
§2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

Essa omissão pode ocorrer teoricamente em âmbito federal ou estadual:

Resta evidente, assim, que o objeto da ADO poderá ser omissão legislativa federal ou estadual, ou ainda omissões administrativas que afetem a efetividade da Constituição. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 1200).

Em conformidade com o texto constitucional, a praxe forense relativa à ADO revela que o provimento e finalidade precípua da ação é a cientificação do Poder ou órgão inerte, para que sejam adotadas as medidas cabíveis. No caso do Poder Legislativo, em comum respeito ao princípio da separação dos poderes, essa cientificação não tem qualquer efeito cogente. Sendo órgão administrativo, o provimento do STF seria vinculante e mandamental. Vê-se que é possível que a norma faltante pode ser lei em sentido estrito ou ato normativo secundário (como instruções normativas), desde que o mesmo seja imprescindível à satisfação do mandamento constitucional.

A legitimidade ativa para propositura é a mesma da ADI:

CF/88: Art. 103. […]
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

O procedimento a ser observado está previsto na Lei nº 9.868/99, com alterações pela Lei nº 12.063/09.

De início, a petição inicial há de: a) expor a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa; e b) fazer o pedido com suas especificações (art. 12-B). A peça deve ser acompanhada, naturalmente, de procuração e dos documentos comprobatórios da alegada omissão. Não supridas estas especificidades, o Relator irá indeferir a petição inicial, decisão que poderá ser alvo de agravo (art. 12-C, parágrafo único).

Proposta a ação, não se admitirá desistência, tendo em vista que a pretensão jurídica aqui é objetiva e potencialmente diz respeito a todos os cidadãos, visto que trata da efetividade da carta constitucional.

À semelhança do rito da ADI, aplicável à ADO de forma geral: a) o processo correrá com o pedido de informações ao Poder ou órgão envolvido; b) não se admitirá intervenção de terceiros, sendo possível a participação de amicus curiae; c) será possível a concessão de medida cautelar (cuja efetividade e utilidade, neste caso, é discutida pela doutrina); e d) será ouvido o Procurador-Geral da República, no caso de ele não ter proposto a ação.

No que se refere à medida cautelar, explica a Lei nº 9.868/99:

Art. 12-F.  Em caso de excepcional urgência e relevância da matéria, o Tribunal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, observado o disposto no art. 22, poderá conceder medida cautelar, após a audiência dos órgãos ou autoridades responsáveis pela omissão inconstitucional, que deverão pronunciar-se no prazo de 5 (cinco) dias.
§ 1o  A medida cautelar poderá consistir na suspensão da aplicação da lei ou do ato normativo questionado, no caso de omissão parcial, bem como na suspensão de processos judiciais ou de procedimentos administrativos, ou ainda em outra providência a ser fixada pelo Tribunal.

Diferentemente da ADI, entretanto, temos que a manifestação do Advogado Geral da União não é obrigatória (visto que não há ato normativo para defender). A manifestação do mesmo dependerá de posicionamento do relator do caso. 

 

Omissão parcial

Como se viu anteriormente, a omissão que pode ser alvejada pela ADO pode ser total (absoluta), situação em que o mandamento constitucional é ignorado em sua integralidade; ou parcial (relativa), ocasião em que há o parcial atendimento da obrigação normativa constitucional, gerando inconstitucionalidade por insuficiência ou por violação da igualdade (neste último caso, lembre-se de situações em que a lei, ferindo a igualdade, gera benefício para uma categoria, mas ignora outra que, em termos de isonomia, deveria ter tido o mesmo tratamento).

A abordagem processual da omissão parcial é tema tormentoso e discutido fervorosamente na doutrina.

O que se pode perceber é que, mesmo existindo uma insuficiência, há ato normativo existente (e viciado), o que, em tese, viabiliza a apresentação também da ADI. Há autores que vão entender pela fungibilidade entre ADI e ADO em tais situações, mesmo que existam precedentes no STF em sentido contrário.

A maior dificuldade dessa discussão reside na abordagem desse diploma viciado por inconstitucionalidade por omissão parcial, pois a decretação de nulidade (comum efeito do controle concentrado) seria situação ainda mais prejudicial do que a manutenção da lei ou ato na forma em que se encontra (algo como “melhor parte do que nada”).

Dado que no caso de uma omissão parcial existe uma conduta positiva, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade, em princípio, da aferição da legitimidade do ato defeituoso ou incompleto no processo de controle de normas, ainda que abstra­to. Tem-se, pois, aqui, uma relativa, mas inequívoca fungibilidade entre a ação direta de inconstitucionalidade (da lei ou ato normativo) e o processo de controle abstrato da omissão, uma vez que os dois processos – o de controle de normas e o de controle da omissão – acabam por ter – formal e substancialmente – o mesmo objeto, isto é, a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompletude.
É certo que a declaração de nulidade não configura técnica adequada para a eliminação da situação inconstitucional nesses casos de omissão inconstitucional. Uma cas­sação aprofundaria o estado de inconstitucionalidade, tal como já admitido pela Corte Constitucional alemã em algumas decisões (MENDES; BRANCO, 2015, p. 1205).

A solução trazida por parte da doutrina, enquadrada dentro do limitado escopo prático da ADO, seria a simples declaração de inconstitucionalidade sem declaração de nulidade (ocasião em que o STF reconhece a inconstitucionalidade, mas não cassa ou nulifica a norma impugnada, que permanecerá no ordenamento), convocando-se novamente o Poder ou órgão omisso para tomar as providências adequadas.

 

Referências

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

Questões

(CREA-MG – Advogado – 2014) Assinale a alternativa correta acerca da ação direta de inconstitucionalidade por omissão:

a) Cabem embargos da decisão que indeferir a petição inicial.
b) Proposta a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, se admitirá desistência.
c) O relator deverá solicitar a manifestação do Advogado-Geral da União, no prazo de 15 (quinze) dias.
d) O Procurador-Geral da República, nas ações em que não for autor, terá vista do processo, por 15 (quinze) dias, após o decurso do prazo para informações.

 

 

(FCC – TRT da 7ª Região – Oficial de Justiça – 2009) Na hipótese de o poder público se abster do dever de emitir um comando normativo, exigido pela Constituição Federal, é cabível a Ação Direta de inconstitucionalidade

a) obrigacional.
b) por omissão.
c) genérica.
d) interventiva.
e) mandamental.

 

 

(CESPE – PGE-AL – Procurador do Estado – 2009) Acerca da ADI por omissão e de temas correlatos, assinale a opção correta.

a) A omissão do poder público que justifica o ajuizamento da ADI por omissão é aquela relativa às normas constitucionais de eficácia contida de caráter impositivo, em que a CF investe o legislador na obrigação de expedir comandos normativos.
b) Desde a promulgação da CF, o STF entende que é cabível a concessão de medida liminar em sede de ADI por omissão.
c) É incabível a modulação dos efeitos da declaração da inconstitucionalidade em sede de ADI por omissão.
d) Nos últimos dois anos, a jurisprudência do STF evoluiu quanto aos efeitos das decisões que reconhecem a omissão do legislador, seja em sede de ADI por omissão, seja em sede de mandado de injunção. De um caráter meramente declaratório e mandamental, passou a fixar prazo razoável para que o Congresso Nacional supra a omissão, chegando até a proferir sentenças de perfil aditivo.
e) Em se tratando de reconhecimento de omissão inconstitucional perpetrada por órgão administrativo, o STF, em sede de ADI por omissão, está livre para fixar o prazo para que o órgão adote as providências necessárias para sanar o vício, uma vez que a CF não prevê prazo específico.

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