A ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) é um dos instrumentos integrantes do sistema de controle concentrado de constitucionalidade estabelecido pela Constituição Federal de 1988, funcionando na praxe judiciária como um complemento às demais ferramentas de controle abstrato, pois alcança violações que estão além do escopo de atuação das demais ações deste sistema. A previsão provém do texto original da Constituição:

Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:
§ 1.º A argüição de descumprimento de preceito fundamental, decorrente desta Constituição, será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei.

Nota: ressalte-se que a norma em questão possuía, na origem, eficácia limitada, pois não seria possível sua aplicação sem o devido complemento normativo. Esse complemento foi fornecido pela Lei nº 9.882/99, e a primeira ADPF proposta foi autuada em janeiro de 2000. Esta, entretanto, teve seu seguimento negado por impossibilidade jurídica do pedido.

Duas situações possibilitam a propositura da ADPF: a) evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público; e b) quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.

Como se percebe, a ADPF busca complementar o controle abstrato, passando a abranger, como principais exemplos, o controle de normas municipais, atos normativos infralegais e de normas anteriores à Constituição de 1988 (inatacáveis por ADI).

Esta ação coloca-se ao lado das demais do controle concentrado, tendo o objetivo de suprir as necessidades de controle abstrato de constitucionalidade. Assim, por exemplo, possui relevante função diante do direito pré-constitucional e do direito municipal, uma vez que, no primeiro caso, a ação direta de inconstitucionalidade não é admitida pelo STF em vista da ideia de ser contraditório declarar inconstitucional norma que não foi recepcionado por incompatibilidade com o novo texto constitucional, e, no segundo, a inconstitucionalidade tem como parâmetro de controle somente a Constituição Estadual (art. 125, §2º, da CF). (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2015, tópico nº 8.71).

 

Legitimidade ativa e objeto

A legitimidade ativa é a mesma da ADI (art. 2º, da Lei nº 9.882/99, e art. 103, da CF/88:

Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.

Nota: relembre-se que o Presidente, as Mesas do Senado e Câmara, o PGR, o CFOAB e os partidos com representantes eleitos têm legitimidade ampla, não lhes sendo exigida a pertinência temática com suas finalidades ou coerência com sua esfera delimitada. Por exemplo, o governador de um Estado não pode propor ADPF em face de legislação de um outro Estado ou sobre tema que não tenha repercussão em sua esfera jurídico-política de atuação. Igualmente, uma Confederação Sindical de uma categoria não pode propor ADPF contra atos e normas que não tenham pertinência com sua atividade profissional ou econômica ou suas finalidades institucionais.

Um exemplo concreto:

[…]
1. A jurisprudência do STF exige, para a caracterização da legitimidade ativa das entidades de classe e das confederações sindicais para as ações de controle concentrado, a existência de correlação entre o objeto do pedido de declaração de inconstitucionalidade e os objetivos institucionais da associação. (STF – ADPF 385-AgR/SE – DJe-244 DIVULG 24-10-2017 PUBLIC 25-10-2017).

O objeto da ADPF (ou seja, a coisa que se impugna) pode ser o ato do poder público ou lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição envoltos em controvérsia constitucional.

 

Petição inicial e subsidiariedade

A petição inicial da ADPF, além dos elementos básicos, deve conter (art. 3º, da Lei nº 9.882/99):

I – a indicação do preceito fundamental que se considera violado;
II – a indicação do ato questionado;
III – a prova da violação do preceito fundamental;
IV – o pedido, com suas especificações;
V – se for o caso, a comprovação da existência de controvérsia judicial relevante sobre a aplicação do preceito fundamental que se considera violado.
Parágrafo único. A petição inicial, acompanhada de instrumento de mandato, se for o caso, será apresentada em duas vias, devendo conter cópias do ato questionado e dos documentos necessários para comprovar a impugnação.

A falta destes requisitos implica inépcia do petitório, justificando seu indeferimento liminar pelo relator no STF (art. 4º, da Lei nº 9.882/99). Esta decisão é agravável para o Plenário em cinco dias.

Este mesmo dispositivo revela o caráter subsidiário da ADPF em relação aos demais mecanismos de controle abstrato. De fato, existindo outro meio eficaz de neutralizar a lesividade da controvérsia, o mesmo há de ser utilizado em detrimento da ADPF (art. 4º, parágrafo único, da Lei nº 9.882/99:

§ 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade.

Naturalmente, é como tem julgado o STF:

[…]
1. O cabimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental será viável desde que haja a observância do princípio da subsidiariedade, que exige o esgotamento de todas as vias possíveis para sanar a lesão ou a ameaça de lesão a preceitos fundamentais, ou a verificação, ab initio, de sua inutilidade para a preservação do preceito. Precedentes desta CORTE. […] (STF – ADPF AgR 224/DF – DJe 8/11/2017).

 

A noção de preceito fundamental

Como se percebe, a ADPF pode ser usada, quando inexistir outro meio hábil, para sanar violação a preceito fundamental. Trata-se de conceito jurídico indeterminado (lembre-se que estes são normas cujo teor não é preciso, mas que tem repercussões jurídicas precisas) cuja definição é disputada na praxe judiciária e na doutrina, mas que usualmente refere-se a certas previsões relevantes da Constituição, como os princípios fundamentais da República, os direitos e garantias fundamentais, os princípios sensíveis etc. São exemplos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
[…]

Art. 60, § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

Tais preceitos fundamentais são parâmetros de controle no processo abstrato de constitucionalidade, servindo como o espelho de comparação para verificação a constitucionalidade e compatibilidade com a Constituição de 1988.

 

Decisão na ADPF

De início, a decisão na ADPF, tomada com a presença de ao menos 2/3 dos ministros, é irrecorrível e não sujeita à ação rescisória (art. 12, da Lei nº 9.882/99), apesar de poder sofrer modulação de seus efeitos (art. 11). Os efeitos, ademais, são vinculantes e oponíveis a todos (erga omnes), o que possibilita o manejo de reclamação em caso de descumprimento (art. 13).

Se o objeto da ADPF for norma anterior à Constituição, o resultado do julgamento é a declaração de não recepção.

Nota: de fato, o exame de em si constitucionalidade é sempre contemporâneo, de forma que uma lei anterior à CF/88 não pode ser declarada inconstitucional em relação a esta, mas pode ser declarada não recepcionada por não se adequar materialmente à nova realidade constitucional.

Nos demais casos, a decisão determina a nulidade ou inconstitucionalidade do ato, de sua aplicação ou até mesmo de alguma interpretação (art. 10, da Lei nº 9.882/99):

Art. 10. Julgada a ação, far-se-á comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.
§ 1º O presidente do Tribunal determinará o imediato cumprimento da decisão, lavrando-se o acórdão posteriormente.

 

Medida liminar

À semelhança dos demais mecanismos de controle abstrato, há previsão da possibilidade de concessão de medida liminar, que pode consistir em suspensão de processos, dos efeitos de decisão ou qualquer outra medida compatível com a finalidade e natureza da ação.

Lei nº 9.882/99: Art. 5º O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na argüição de descumprimento de preceito fundamental.
§ 1º Em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda, em período de recesso, poderá o relator conceder a liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.
§ 2º O relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.
§ 3º A liminar poderá consistir na determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental, salvo se decorrentes da coisa julgada.

 

Exemplos de ADPF

Na ADPF nº 273/MT, discutiu-se norma municipal que permitia o comércio de artigos de conveniência em farmácias. A ADPF buscava a inconstitucionalidade da norma, mas o STF entendeu que houve regular uso da competência legislativa suplementar do Município.

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (CF, ART. 102, § 1º) – LEI Nº 2.774/2005 DO MUNICÍPIO DE VÁRZEA GRANDE/MT – DIPLOMA LEGISLATIVO QUE AUTORIZA E REGULAMENTA A VENDA DE ARTIGOS DE CONVENIÊNCIA EM FARMÁCIAS, EM DROGARIAS E EM ESTABELECIMENTOS CONGÊNERES – ALEGADA USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DA UNIÃO FEDERAL PARA EDITAR NORMAS GERAIS SOBRE PROTEÇÃO E DEFESA DA SAÚDE (CF, ART. 24, INCISO XXII, §§ 1º E 2º) – INOCORRÊNCIA – NORMA ESTATAL CUJO CONTEÚDO MATERIAL, NA REALIDADE, ESTABELECE REGRAS SOBRE COMÉRCIO LOCAL – COMPETÊNCIA LEGISLATIVA SUPLEMENTAR DOS MUNICÍPIOS (CF, ART. 30, INCISO II) – POSSIBILIDADE – PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – PARECER DA PROCURADORIA-GERAL DA REPÚBLICA PELA IMPROCEDÊNCIA DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO – ADPF JULGADA IMPROCEDENTE. (STF – DJe-138 DIVULG 22-06-2017 PUBLIC 23-06-2017).

Na ADPF 291/DF, o STF entendeu não recepcionadas pela Constituição Federal a expressão “pederastia ou outro”, mencionada na rubrica enunciativa referente ao art. 235 do Código Penal Militar, e a expressão “homossexual ou não”, contida no referido dispositivo, mas manteve a recepção do tipo penal militar relativo a atos libidinosos praticados em ambientes sujeitos à administração militar.

2. Não se pode permitir que a lei faça uso de expressões pejorativas e discriminatórias, ante o reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual como liberdade existencial do indivíduo. Manifestação inadmissível de intolerância que atinge grupos tradicionalmente marginalizados. (STF – DJe-094 DIVULG 10-05-2016 PUBLIC 11-05-2016).

Na ADPF 156/DF, o STF entendeu não recepcionada a exigência prevista na CLT relativa à obrigação do depósito de multa para admissibilidade de recurso administrativo.

1. Incompatibilidade da exigência de depósito prévio do valor correspondente à multa como condição de admissibilidade de recurso administrativo interposto junto à autoridade trabalhista ( § 1o do art. 636, da Consolidação das Leis do Trabalho) com a Constituição de 1988. (STF – DJe-208 DIVULG 27-10-2011 PUBLIC 28-10-2011).

Na ADPF 54/DF o STF se debruçou sobre o Código Penal de 1940 e entendeu que seria inconstitucional a interpretação de que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo seria conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do CP. (STF – DJe-080 DIVULG 29-04-2013 PUBLIC 30-04-2013).

 

Referências

SARLET, Ingo; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.

 

Questões

(CESPE – TRF5 – Juiz Federal Substituto – 2015) No tocante às ações de controle concentrado, assinale a opção correta com base no entendimento do STF:

a) Cabe ao STF processar e julgar a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual.
b) A despeito do caráter dúplice da ADI, o indeferimento de medida cautelar não dá margem à propositura de reclamação, visto que essa decisão não possui efeito vinculante.
c) A ADPF pode ser utilizada para o fim de rever ou cancelar súmula vinculante.
d) Dado o caráter subsidiário e complementar da ADPF, o município tem legitimidade para propô-la.
e) Não é cabível medida cautelar em ADI por omissão.

 

(FCC – TRT/MT – Analista Judiciário – Área Administrativa) A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental − ADPF, segundo o Supremo Tribunal Federal:

a) é um tipo de ação, ajuizada exclusivamente no STF, que tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
b) não pode ter natureza equivalente às ações declaratórias de inconstitucionalidade.
c) pode questionar a constitucionalidade de uma norma perante a Constituição Federal, mas tal norma deve ser federal e posterior à Constituição vigente.
d) possui os mesmos legitimados para ajuizá-la que os da ação declaratória de inconstitucionalidade, salvo o Presidente da República.
e) é cabível, por ser autônoma, mesmo quando existir outro tipo de ação que possa ser proposta.

 

(TRT/RN – Juiz do Trabalho Substituto – 2015) Com base no regramento relativo ao processo e julgamento da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), é correto afirmar:

a) O Supremo Tribunal Federal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, poderá deferir pedido de medida liminar na ADPF, podendo essa consistir determinação de que juízes e tribunais suspendam o andamento de processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da matéria, independente da coisa julgada.
b) Caberá ADPF, exclusivamente, quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal ou estadual, incluídos os anteriores à Constituição.
c) Podem propor ADPF os legitimados para a Ação Declaratória de Constitucionalidade.
d) A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido formulado na ADPF será passível de Ação Rescisória, após o seu trânsito em julgado.
e) As entidades de classe de âmbito nacional detêm aptidão processual plena para propor ADPF, a exemplo do que dispõe a Constituição Federal.

 

(CESPE – TJ/DFT – Analista Judiciário – Judiciária – 2015) O STF pode admitir como ADPF ADI à qual tenha negado conhecimento, desde que presentes todos os requisitos para a sua admissibilidade.

Certo
Errado