De forma geral, temos na decisão de mérito revestida pelo manto da coisa julgada uma sensação de segurança jurídica e pacificação do conflito judicializado. Em tese, isso deriva do desfecho de um processo judicial contraditório, garantidor de ampla defesa e guiado por um órgão julgador imparcial e previamente definido. Em certas ocasiões, entretanto, é possível reavivar a discussão após o esgotamento do procedimento e de seus recursos.

Uma das formas típicas de realizar tal proeza é o manejo da ação rescisória, a qual se debruça sobre vícios ou erros que acometem o processo original para rescindir a decisão ali prolatada e alcançar uma nova decisão, adequada aos corretos parâmetros jurídicos e fáticos. Relativizam-se, consequentemente, os festejados efeitos da coisa julgada, desconstituindo uma decisão viciada para prestigiar uma idônea.

No eterno conflito entre dois essenciais valores de nosso sistema processual, o legislador, ao prever, ainda que de forma excepcional, a ação rescisória, dá uma derradeira chance à justiça em detrimento da segurança jurídica (NEVES, 2016, p. 1565).

A ação rescisória é uma demanda autônoma (não é um recurso ou incidente, sendo comumente definida como de sucedâneo recursal) de natureza desconstitutiva (ou constitutiva negativa), com curso em autos próprios, que busca desconstituir a decisão de mérito transitada em julgado com base em certos vícios ou circunstâncias taxativamente previstos na legislação. Entretanto, não é qualquer vício que possibilita a propositura da demanda:

Quando o vício é daqueles que desaparecem quando o processo se encerra, não cabe a ação rescisória. Ela exige que a nulidade seja absoluta, que se prolongue para além do processo (GONÇALVES, 2016, tópico nº 5.3.1)

Objeto da ação rescisória: regra e exceções

Como regra geral, vislumbra-se que o objeto central da ação rescisória é a decisão de mérito transitada em julgado. Assim, não é cabível a propositura em face de decisões que não apreciam o mérito (o aspecto material, o tema de fundo) da demanda, como as que, por exemplo, extinguem o processo por falta de algum pressuposto ou que meramente declaram extinta a execução.

Na sistemática do CPC/2015, decisões interlocutórias de mérito também transitam em julgado autonomamente (vide o julgamento antecipado parcial), possibilitando a apresentação da ação rescisória em relação a tais partes da demanda.

Por outro lado, há decisões que não são de mérito (pelo menos tecnicamente), mas que impedem a repropositura da ação. Em tais situações, a ação rescisória é viável. É o caso do reconhecimento da prescrição e da decadência (casos em que não se analisa propriamente a questão de fundo, mas que são de mérito por força legal, nos termos do art. 487, do CPC), da coisa julgada ou do não conhecimento de recurso. Nestas hipóteses, o vício deve se encontrar nestas decisões, e não necessariamente nas decisões anteriores. A doutrina explica:

Assim, se, por exemplo, o Tribunal recursou conhecer de recurso mediante decisão interlocutória que violou disposição literal de lei, não se pode negar à parte prejudicada o direito de propor a rescisória, sob pena de aprovar-se flagrante violação da ordem jurídica. É certo que a decisão do Tribunal não enfrentou o mérito da causa, mas foi por meio dela que se operou o trânsito me julgado da sentença que decidiu a lide e que deveria ser revista pelo Tribunal por força da apelação não conhecida (THEODORO JR., 2016, n.p. item 650).

Também é valioso observar que é desnecessária a ação rescisória em face de decisões inexistentes, como a prolatada por órgão sem jurisdição ou a que carece de dispositivo.

A própria lei, por vezes, também impede a ação rescisória, como nos casos de decisão proferida no controle concentrado de constitucionalidade ou nos juizados especiais (art. 59, da Lei nº 9.099).

Por fim, vale atentar para o fato de que a ação pode se insurgir contra partes da decisão (uma consequência comum da possibilidade de cumulação de pedidos), conforme expõe o art. 966, §3º, do CPC:

§3o A ação rescisória pode ter por objeto apenas 1 (um) capítulo da decisão.

código de processo civil

Juízo rescindente e rescisório

O trâmite da ação rescisória apresenta dois momentos marcantes: a) a rescisão da decisão anterior (juízo rescindente); e b) o novo julgamento (juízo rescisório).

Feita a desconstituição da decisão anterior, o juízo rescisório pode se revestir de qualquer caráter decisório, como condenatório, declaratório ou constitutivo.

Prazo decadencial

Em face da ruptura do manto da coisa julgada, gerando o afastamento de um dos princípios mais básicos do processo e quebra de expectativas dos litigantes e da sociedade, o CPC traz um limite temporal ao direito de buscar a rescisão.

De acordo com o art. 975, do CPC:

Art. 975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.
§1º Prorroga-se até o primeiro dia útil imediatamente subsequente o prazo a que se refere o caput, quando expirar durante férias forenses, recesso, feriados ou em dia em que não houver expediente forense.
§2º Se fundada a ação no inciso VII do art. 966, o termo inicial do prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo.
§3º Nas hipóteses de simulação ou de colusão das partes, o prazo começa a contar, para o terceiro prejudicado e para o Ministério Público, que não interveio no processo, a partir do momento em que têm ciência da simulação ou da colusão.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Trata-se de prazo decadencial, por fulminar o próprio direito à referida ação, e não o mero acesso aos mecanismos jurídicos hábeis a intentá-la (que seria uma hipótese de prescrição). O prazo é prorrogável, caso se encerre no curso de férias forenses, recessos e feriados, e, dependendo do vício, se inicia com a aquisição de ciência sobre este. Na situação de descoberta de nova prova, o prazo se elastece para até 5 anos (ou seja, a descoberta tem que ocorrer até 5 anos após a última decisão de mérito).

A legislação extravagante também apresenta prazos diferenciados.

Art. 8°-C. É de oito anos, contados do trânsito em julgado da decisão, o prazo para ajuizamento de ação rescisória relativa a processos que digam respeito a transferência de terras públicas rurais

Lei n° 6.739/79

Hipóteses de rescindibilidade

O art. 966, do CPC, arrola taxativamente as hipóteses em que é viável a rescisão de decisão de mérito transitada em julgado. O dispositivo faz uso da expressão “decisão” no lugar de “sentença”, o que ratifica a visão de que também podem ser objetos de impugnação decisões interlocutórias, decisões monocráticas ou acórdãos.

Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:
I – se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;
II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente incompetente;
III – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;
IV – ofender a coisa julgada;
V – violar manifestamente norma jurídica;
VI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação rescisória;
VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;
VIII – for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

Sobre estas hipóteses, alguns apontamentos são importantes.

No caso do item I (prevaricação, concussão ou corrupção), aponta a doutrina que a condenação prévia em Juízo criminal é desnecessária e que a prova destes vícios pode ser feito no decurso da ação rescisória (THEODORO JR., 2016).

Sobre o item III (dolo, coação, colusão ou simulação para fraudar a lei), é interessante relembrar que a colusão (conluio) é a ilícita conjunção de interesses para fraudar a lei. As partes propõem demanda simulada, dando aparência de licitude, mas buscando interesse escuso. No caso do dolo ou coação, o vício tem origem unilateral no litigante vencedor.

No caso da hipótese do item V, fala-se em evidentes erros judicias não suportados por qualquer interpretação controvertida existentes ao momento da decisão. Havendo divergência contemporânea, a jurisprudência tende a afastar a possibilidade de rescindibilidade ulterior (há decisões contrárias entretanto). Nesse sentido, temos uma velha súmula do STF, que é aplicada até hoje:

STF – Súmula nº 343: Não cabe ação rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.

STF

Com base nesta alínea, também é possível a rescisão quando for ignorada situação de distinguishing (ou seja, o órgão julgador, em caso de julgamento repetitivo ou aplicação de súmula, ignora elementos fáticos e jurídicos que se distinguem da relação jurídica repetitiva ou alvo de súmula, aplicando a solução genérica indevidamente em caso particularizado/distinto):

§ 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.

§ 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.

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No caso de prova falsa (item VI), é desnecessário prévio processo criminal. No mais, a doutrina aponta que a existência de outros fundamentos (além da prova falsa) para manter a decisão podem impedir a rescisão:

A razão é óbvia, porque, havendo outros fundamentos aptos à manutenção da decisão, a eventual procedência da ação rescisória será inútil, não tendo condições concretas de desconstituir a decisão impugnada (NEVES, 2016, p. 1572).

Este mesmo raciocínio vale para a prova nova (item VII), que deve ser suficiente por si só para reverter o resultado do julgamento. Salvo contrário, a medida é inócua. No que se refere à prova nova, é necessário relembrar que hipóteses de preclusão da produção de prova (a parte não requereu tempestivamente o depoimento, a oitiva de testemunha ou a juntada de documento que possuía) impedem a propositura com base neste inciso.

Legitimidade

A legitimidade para propor a ação está delimitada no art. 967, do CPC:

Art. 967. Têm legitimidade para propor a ação rescisória:
I – quem foi parte no processo ou o seu sucessor a título universal ou singular;
II – o terceiro juridicamente interessado;
III – o Ministério Público:
a) se não foi ouvido no processo em que lhe era obrigatória a intervenção;
b) quando a decisão rescindenda é o efeito de simulação ou de colusão das partes, a fim de fraudar a lei;
c) em outros casos em que se imponha sua atuação;
IV – aquele que não foi ouvido no processo em que lhe era obrigatória a intervenção.
Parágrafo único. Nas hipóteses do art. 178, o Ministério Público será intimado para intervir como fiscal da ordem jurídica quando não for parte.

CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

A legitimidade passiva abrange a parte e terceiros beneficiados pela decisão rescidenda.

Competência

A competência para julgar a ação rescisória é de tribunais.

As decisões de primeiro grau são julgadas pelos tribunais a que são vinculados, enquanto as decisões dos tribunais em geral são julgadas pelos próprios.

Diante desse “rejulgamento” pelo próprio órgão, busca-se preferencialmente uma relatoria distinta:

Art. 971, parágrafo único: A escolha de relator recairá, sempre que possível, em juiz que não haja participado do julgamento rescindendo.

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Nos casos em que a decisão de primeiro grau é atacável por recurso ordinário para instância extraordinária (como o julgamento de demanda entre Estado estrangeiro ou organismo internacional e município ou pessoa domiciliada ou residente no Brasil, julgado pela Justiça Federal em primeiro grau e com recurso para o STJ), há doutrinadores que afirmam que o Juízo competente para a rescisão é o do julgamento do recurso ordinário não interposto.

A questão é interessante, porque, quando transita em julgado a sentença (e não o acórdão), a rescisória é cabível perante o tribunal ao qual o juiz está vinculado (geralmente, o juiz federal está vinculado ao respectivo TRF). Só que, nesses casos, ele está vinculado ao STJ. Por outro lado, o art. 105, I, e, da Constituição Federal dispõe que compete ao STJ processar e julgar as rescisórias de seus julgados. Não há previsão constitucional para o STJ julgar ação rescisória contra sentença de primeira instância. Estando, contudo, o juiz a ele vinculado, deve a rescisória ser proposta no STJ. Noutros termos, a rescisória ataca a sentença, mas será proposta no STJ, em razão da vinculação do juiz, em causas desse tipo, àquele tribunal superior (DIDIER JR., 2016, p. 454).

Outras peculiaridades

A ação rescisória não impede a execução do julgado combatido, salvo se o relator conceder tutela provisória.

Art. 969.  A propositura da ação rescisória não impede o cumprimento da decisão rescindenda, ressalvada a concessão de tutela provisória.

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O prazo de resposta (contestação), definido pelo Relator, será de 15 a 30 dias (art. 970, do CPC).

A produção probatória na ação pode ser delegada ao órgão de primeiro grau originário.

A improcedência do pedido implica a perda do depósito inicial em favor do réu (art. 974, parágrafo único, do CPC).

Referências

DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 3. Salvador: JusPodivm, 2016.
GONÇALVES, Marcus Vinícius Rios. Curso de direito processual civil esquematizado. São Paulo : Saraiva, 2016.
NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Novo código de processo civil comentado. Salvador: JusPodivm, 2016.
THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil. v 2. Rio de Janeiro: Forense, 2016.