Em se tratando de inconstitucionalidade, ou seja, incompatibilidade contemporânea com a Constituição, é comum que o estudioso do Direito tenha em mente situações tipicamente comissivas (positivas), como a edição de uma lei ou ato normativo incompatível com a Constituição. A teoria constitucional contemporânea, entretanto, também estuda condutas omissivas (negativas, “non facere”) inconstitucionais, nas quais a inércia de um agente ou instituição é postura contrária à carta constitucional. Isso é possível porque diplomas normativos como a Constituição brasileira de 1988 se revestem de índole dirigente, razão pela qual comumente assumem compromissos e determinam a prática de condutas e edição de normas que visem à concretização dos objetivos fundamentais republicanos ou outros preceitos e valores dependentes de atuação infraconstitucional.
A manutenção de uma deliberada inércia para com compromissos constitucionais é situação prejudicial à ordem jurídica como um todo, podendo contribuir para a chamada síndrome de inefetividade da constituição:
Ora, o silêncio transgressor, a insinceridade normativa, a inércia legislativa, o programaticismo das cartas novecentistas, ou quaisquer outros nomes correlatos à omissão inconstitucional, devem ser repudiados, porquanto produzem a síndrome de inefetividade das constituições, responsável pela erosão da consciência constitucional. (BULOS, 2015, p. 151).
Essa inércia, entretanto, para se revestir do vício da inconstitucionalidade, há de ignorar diretamente um explícito mandamento constitucional. Nesta toada, a doutrina informa que omissões decorrentes da leitura sistemática ou de posições implícitas da Constituição não seriam omissões inconstitucionais:
Somente o descumprimento de um preceito ou princípio constitucional individualizado, concreto e explícito é capaz de ensejar a categoria. Por isso, a omissão inconstitucional não é obtida em face do sistema em bloco. […] Apenas se afigura na seara dos mandamentos específicos, expressos e cristalinos, cuja inexequibilidade, em concreto, frustra o cumprimento da constituição. (BULOS, 2015, p. 152-153).
Ainda, a inexistência de norma ou ato de edição obrigatória deve ser proposital, deliberada. Nestes termos, não se poderia reconhecer inconstitucionalidade na simples demora dos atores legislativos. Exemplo disso são temas que encontram infindáveis debates e deliberações no Poder Legislativo, mas sem a concretização em lei.
No Brasil, as normas constitucionais de eficácia limitada (que pela classificação de José Afonso da Silva, são as que dependem da edição de norma infraconstitucional para surtirem seus efeitos positivos) são as típicas vítimas da inconstitucional inércia legislativa. Estas normas, quando carente da sua complementação infraconstitucionais, criam lacunas técnicas, insuperáveis pelos métodos comuns de integração do Direito, como a analogia e aplicação dos princípios gerais. Exemplos são comuns na CF/88, como as “condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos” (art. 199, §4º) ou a partilha federativa de recursos fiscais prevista no art. 91, do ADCT (ADO nº 25).
Detectada a omissão inconstitucional, é possível o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) diretamente no Supremo Tribunal Federal, nos moldes da Lei nº 9.868/99.
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
A ação direta de inconstitucionalidade por omissão é uma demanda objetiva integrante do sistema de controle concentrado de constitucionalidade (sem controvérsia ou litígio individualizado) instaurada perante o STF. Tal ação não serve para alcançar a solução de conflitos individuais ou de casos concretos. Seu objeto é a omissão inconstitucional abstratamente observada e sua previsão é inaugurada na Constituição de 1988:
CF/88: Art. 103. Podem propor a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade:
§2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.
Essa omissão pode ocorrer teoricamente em âmbito federal ou estadual:
Resta evidente, assim, que o objeto da ADO poderá ser omissão legislativa federal ou estadual, ou ainda omissões administrativas que afetem a efetividade da Constituição. (MENDES; BRANCO, 2015, p. 1200).
Em conformidade com o texto constitucional, a praxe forense relativa à ADO revela que o provimento e finalidade precípua da ação é a cientificação do Poder ou órgão inerte, para que sejam adotadas as medidas cabíveis. No caso do Poder Legislativo, em comum respeito ao princípio da separação dos poderes, essa cientificação não tem qualquer efeito cogente. Sendo órgão administrativo, o provimento do STF seria vinculante e mandamental. Vê-se que é possível que a norma faltante pode ser lei em sentido estrito ou ato normativo secundário (como instruções normativas), desde que o mesmo seja imprescindível à satisfação do mandamento constitucional.
A legitimidade ativa para propositura é a mesma da ADI:
CF/88: Art. 103. […]
I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal;
III – a Mesa da Câmara dos Deputados;
IV a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
V o Governador de Estado ou do Distrito Federal;
VI – o Procurador-Geral da República;
VII – o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VIII – partido político com representação no Congresso Nacional;
IX – confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
O procedimento a ser observado está previsto na Lei nº 9.868/99, com alterações pela Lei nº 12.063/09.
De início, a petição inicial há de: a) expor a omissão inconstitucional total ou parcial quanto ao cumprimento de dever constitucional de legislar ou quanto à adoção de providência de índole administrativa; e b) fazer o pedido com suas especificações (art. 12-B). A peça deve ser acompanhada, naturalmente, de procuração e dos documentos comprobatórios da alegada omissão. Não supridas estas especificidades, o Relator irá indeferir a petição inicial, decisão que poderá ser alvo de agravo (art. 12-C, parágrafo único).
Proposta a ação, não se admitirá desistência, tendo em vista que a pretensão jurídica aqui é objetiva e potencialmente diz respeito a todos os cidadãos, visto que trata da efetividade da carta constitucional.
À semelhança do rito da ADI, aplicável à ADO de forma geral: a) o processo correrá com o pedido de informações ao Poder ou órgão envolvido; b) não se admitirá intervenção de terceiros, sendo possível a participação de amicus curiae; c) será possível a concessão de medida cautelar (cuja efetividade e utilidade, neste caso, é discutida pela doutrina); e d) será ouvido o Procurador-Geral da República, no caso de ele não ter proposto a ação.
No que se refere à medida cautelar, explica a Lei nº 9.868/99:
Art. 12-F. Em caso de excepcional urgência e relevância da matéria, o Tribunal, por decisão da maioria absoluta de seus membros, observado o disposto no art. 22, poderá conceder medida cautelar, após a audiência dos órgãos ou autoridades responsáveis pela omissão inconstitucional, que deverão pronunciar-se no prazo de 5 (cinco) dias.
§ 1o A medida cautelar poderá consistir na suspensão da aplicação da lei ou do ato normativo questionado, no caso de omissão parcial, bem como na suspensão de processos judiciais ou de procedimentos administrativos, ou ainda em outra providência a ser fixada pelo Tribunal.
Diferentemente da ADI, entretanto, temos que a manifestação do Advogado Geral da União não é obrigatória (visto que não há ato normativo para defender). A manifestação do mesmo dependerá de posicionamento do relator do caso.
Omissão parcial
Como se viu anteriormente, a omissão que pode ser alvejada pela ADO pode ser total (absoluta), situação em que o mandamento constitucional é ignorado em sua integralidade; ou parcial (relativa), ocasião em que há o parcial atendimento da obrigação normativa constitucional, gerando inconstitucionalidade por insuficiência ou por violação da igualdade (neste último caso, lembre-se de situações em que a lei, ferindo a igualdade, gera benefício para uma categoria, mas ignora outra que, em termos de isonomia, deveria ter tido o mesmo tratamento).
A abordagem processual da omissão parcial é tema tormentoso e discutido fervorosamente na doutrina.
O que se pode perceber é que, mesmo existindo uma insuficiência, há ato normativo existente (e viciado), o que, em tese, viabiliza a apresentação também da ADI. Há autores que vão entender pela fungibilidade entre ADI e ADO em tais situações, mesmo que existam precedentes no STF em sentido contrário.
A maior dificuldade dessa discussão reside na abordagem desse diploma viciado por inconstitucionalidade por omissão parcial, pois a decretação de nulidade (comum efeito do controle concentrado) seria situação ainda mais prejudicial do que a manutenção da lei ou ato na forma em que se encontra (algo como “melhor parte do que nada”).
Dado que no caso de uma omissão parcial existe uma conduta positiva, não há como deixar de reconhecer a admissibilidade, em princípio, da aferição da legitimidade do ato defeituoso ou incompleto no processo de controle de normas, ainda que abstrato. Tem-se, pois, aqui, uma relativa, mas inequívoca fungibilidade entre a ação direta de inconstitucionalidade (da lei ou ato normativo) e o processo de controle abstrato da omissão, uma vez que os dois processos – o de controle de normas e o de controle da omissão – acabam por ter – formal e substancialmente – o mesmo objeto, isto é, a inconstitucionalidade da norma em razão de sua incompletude.
É certo que a declaração de nulidade não configura técnica adequada para a eliminação da situação inconstitucional nesses casos de omissão inconstitucional. Uma cassação aprofundaria o estado de inconstitucionalidade, tal como já admitido pela Corte Constitucional alemã em algumas decisões (MENDES; BRANCO, 2015, p. 1205).
A solução trazida por parte da doutrina, enquadrada dentro do limitado escopo prático da ADO, seria a simples declaração de inconstitucionalidade sem declaração de nulidade (ocasião em que o STF reconhece a inconstitucionalidade, mas não cassa ou nulifica a norma impugnada, que permanecerá no ordenamento), convocando-se novamente o Poder ou órgão omisso para tomar as providências adequadas.
Referências
BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2014.
MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2015.
Questões
(CREA-MG – Advogado – 2014) Assinale a alternativa correta acerca da ação direta de inconstitucionalidade por omissão:
(FCC – TRT da 7ª Região – Oficial de Justiça – 2009) Na hipótese de o poder público se abster do dever de emitir um comando normativo, exigido pela Constituição Federal, é cabível a Ação Direta de inconstitucionalidade
(CESPE – PGE-AL – Procurador do Estado – 2009) Acerca da ADI por omissão e de temas correlatos, assinale a opção correta.